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Faroé: a histórica Kirkjubøur e a onírica Tjørnuvík

A Catedral de Magnus e a Roykstovan em Kirkjubøur, diante do cemitério junto à igreja.

          Kirkjubøur e Tjørnuvík são duas vilas situadas em posições extremas de Streymoy, a ilha da capital faroesa Tórshavn: uma no sul e outra no norte. A primeira respira história, enquanto a segunda está situada num cenário de cair o queixo.


         Kirkjubøur (pronúncia nada intuitiva: tchírtchubar) foi a última parada do tour à ilha de Sandoy, que descrevi no último post. Para chegar à vila sem carro há duas maneiras, e o melhor, ambas gratuitas. A primeira é pegar o ônibus local 5 em Tórshavn - sim, os ônibus urbanos da capital não cobram tarifa! Como Kirkjubøur pertence ao município de Tórshavn, a vila é ponto final de uma linha de ônibus local, cuja cor vermelha os distingue dos interurbanos azuis. O único senão é que esta linha só funciona de segunda a sexta-feira; acesse aqui para conferir os horários - a parada dos ônibus no centro de Tórshavn é a  Steinatún, na esquina do final da rua de pedestres, e a linha aparece na listagem como 5V na ida e 5E na volta.

Outra vista da vila com Roykstovan à direita

          A segunda maneira é fazer a trilha que liga Tórshavn a Kirkjubøur, com sete quilômetros de extensão, atravessando as colinas. De acordo com o livreto de trilhas distribuído gratuitamente no escritório de turismo da capital, o percurso está classificado como fácil, com duração estimada em duas horas e alcançando uma altura máxima de 230 metros. O caminhante é recompensado com vistas soberbas da costa de Streymoy e das ilhas vizinhas.

            Mas ninguém vai a Kirkjubøur para apreciar o belo cenário onde está encravada a vila, hoje com 75 moradores. Sua origem remonta a monges celtas que habitaram a área no início do século IX  e fugiram com a chegada dos primeiros vikings. Kirkjubøur tem uma peculiaridade geográfica - correntes marinhas desovam detritos em sua costa, e o afluxo de madeiras no oceano foi muito bem-vindo numa ilha sem árvores, facilitando construções na área. Além disso, algas em abundância serviram como fertilizante para a agricultura e a vila prosperou a partir do século XII, principalmente após a chegada do primeiro bispo nessa época. Kirkjubøur então se transformou no centro eclesiástico e cultural principal das Ilhas Faroé durante a Idade Média, com a maioria das terras já pertencentes à Igreja. Aliás, o próprio nome da vila reflete este fato, pois significa algo como "campos cultivados da igreja".

A Igreja de Santo Olavo

            O interesse está concentrado em três construções, uma junto à outra, que formam o sítio histórico mais representativo do arquipélago, tendo presenciado mais de 900 anos de acontecimentos. A primeira é a Igreja de Santo Olavo, situada à beira-mar e construída em 1.111, sendo portanto a igreja mais antiga de Faroé ainda em uso (ao chegarmos tivemos que esperar alguns minutos para que fiéis saíssem de um evento). A igreja tem paredes brancas muito grossas, com meio metro de espessura e uma curiosidade, um buraco hoje tapado por onde leprosos vindos do outro lado da montanha ouviam os sermões. O interior é simples, contendo uma pintura de Sámal Mykines, o pintor faroês mais conhecido fora do país.

A porta vermelha de Roykstovan, com o símbolo do leão real norueguês, não deixando dúvidas do então dono da propriedade

               Em frente à igreja fica Roykstovan, a maior casa da vila, em madeira coberta com piche preto sobre grossas fundações em pedra. Roykstovan foi a sede episcopal e depois virou a chamada Fazenda do Rei. Após a Reforma Protestante as terras pertencentes à Igreja foram confiscadas pela monarquia, daí o nome. O prédio data da mesma época da igreja e é considerado a casa habitada em madeira mais antiga de toda a Europa (obviamente a madeira em si já foi trocada...). As tábuas teriam sido trazidas flutuando dos fiordes noruegueses. A parte mais antiga do casarão está aberta a visitação, incluindo o escritório do bispo. Digna de nota é a porta vermelha da casa, uma réplica da original adornada com o símbolo real norueguês entalhado de um leão segurando um machado. A mesma família, os Patursson, arrenda e administra a fazenda há dezessete gerações, morando até hoje em Roykstovan e tendo gerado no último século vários cidadãos faroeses proeminentes, incluindo escritores e políticos. E mais uma vez, o nome do lugar  nos diz algo sobre os costumes de antigamente. Roykstovan quer dizer "sala de fumaça", uma referência ao cômodo onde se acendia o fogo e que tinha um buraco no teto para a saída da fumaça.

A entrada da Catedral de Magnus, a parte não encoberta pelos andaimes

             Finalmente junto a Roykstovan encontramos a Catedral de Magnus, construída pelo então todo poderoso bispo por volta de 1340. A catedral de pedra nunca foi terminada e foi o centro religioso das ilhas por dois séculos até a Reforma Protestante. Hoje não há teto algum, e os textos que li divergem - uns dizem que o teto que encobria parcialmente a construção ruiu durante uma avalanche há 250 anos, outros afirmam que jamais houve uma cobertura. Sinceramente, fiquei decepcionado com a catedral, considerada um dos monumentos faroeses mais importantes. Já tinha lido que suas paredes estavam cobertas há anos com placas numa tentativa de impedir seu desabamento acelerado pela chuva, e pelas fotos que vi na internet as placas de metal preto até davam um ar moderno à construção, parecendo um telhado sob certos ângulos. Mas o que encontrei foi uma construção quase toda envolta por andaimes cobertos por um plástico branco de reforma.

              Alguns artefatos que enfeitavam as duas igrejas na época áurea da vila hoje se encontram no Museu Nacional de Tórshavn.
        
             Para completar sua importância histórica, Kirkjubøur também foi lar de um rei. Sverre I da Noruega teria nascido na vila no século XII; segundo a lenda sua mãe, cozinheira a serviço do rei, teria chegado fugida após a constatação da gravidez. Sverre, que nos seus primeiros dias teria ficado escondido numa caverna que hoje leva seu nome, cresceu em Kirkjubøur educado pelo bispo e até se ordenou padre, sem ter ideia do seu sangue azul. Aos 24 anos, ao tomar conhecimento da verdade, decidiu rumar para a Noruega para reclamar seu lugar no trono e acabou se tornando um dos governantes mais importantes na história do país escandinavo. 


Tjørnuvík vista a partir da estrada, rodeada por montanhas altas

           Já Tjørnuvik está situada na ponta norte da ilha, a 52 quilômetros da capital. Conhecida pela sua beleza, Tjørnuvik atrai outro tipo de visitantes além dos turistas eventuais. A vila é um dos melhores pontos nas Ilhas Faroé para a prática do surfe (confira sua localização no mapa colocado no post sobre Vestmanna).

            Meu plano era visitar esta área por conta própria na segunda-feira, o dia que eu tinha livre sem nenhum tour agendado. Porém ao chegar na sexta em Faroé verifiquei que a previsão do tempo para a segunda era sombria, e com efeito foi o único dia em que choveu. Como sabia que o cenário era incrivelmente bonito, decidi aproveitar a própria tarde de sexta para conhecer Tjørnuvik com tempo claro. Almocei rápido no excelente restaurante do hotel (vou falar sobre ele no post sobre Tórshavn) e rumei para a rodoviária. A bordo do ônibus 400, cujo destino final era a cidade de Klaksvík, comprei o tíquete para Tjørnuvik por 50 coroas.

              Havia uma conexão em Oyrarbakki onde eu deveria pegar outra linha, a 202, e pensei em matar os vinte minutos de espera conhecendo a vila. Só que o ponto de conexão fica no meio do nada na estrada. Aliás, Oyrarbakki fica na ilha vizinha, Eysturoy, junto ao estreito que a separa de Streymoy. Então se atravessa a ponte com o ônibus 400, se faz a conexão e se passa novamente pela ponte de volta rumo a Tjørnuvik já na linha 202. Meio surreal. Como as estradas para as vilas do interior são bem estreitas e curvas, o 202 era um miniônibus e nele viajaram só eu e um outro turista. O motorista era muito gente boa e acabamos conversando sobre Faroé e a Olimpíada que aconteceria no Rio em menos de dois meses. 


Vista da vila de Tjørnuvík

           O próprio trajeto entre Oyrarbakki e Tjørnuvik é muito pitoresco, margeando o estreito que separa as duas ilhas. A certa altura, aparece do outro lado a vila de Eiði, que era outra opção de passeio só que pegando a linha 200 em Oyrarbakki. 

               Nada podia me preparar para o cenário que me aguardava em Tjørnuvik. Aquela praia e vila desertas (onde estavam seus 56 habitantes?) parecia uma pintura, com a baía que se abre para o oceano ladeada por morros altos e com dois rochedos ao longe no mar enfeitando o horizonte. Decididamente fui conquistado. Há um caminho que sai de um dos lados da vila e margeia a baía, fornecendo uma boa visão da vila na direção das montanhas. Mas a melhor vista é obtida subindo o gramado por trás das casas, junto ao pequeno cemitério.


Outras vistas da praia de areia escura de Tjørnuvík

                Os dois rochedos que saem do mar têm nome e lenda, os associando ao morro alto na frente deles,  que os faz parecerem menores do que são. São os rochedos Eisin e Kellingin  - "o gigante e a bruxa", que um dia foram um casal de gigantes cuja missão era arrastar as Ilhas Faroé de volta à Islândia (haja força!!). As coisas não correram bem ao tentarem cumprir a missão; a gigante tentou escalar o monte Eiðiskollur para prendê-lo numa corda e o morro rachou (a fenda existe mesmo), os fazendo perder tempo precioso. Os dois acabaram surpreendidos pelo nascer do sol e, conforme a mitologia, se tornaram pedras de 70 metros de altura em frente ao morro. Há algumas  previsões de que Kellingin, com um vão  na sua base que o faz parecer ter duas pernas, acabe cedendo de vez e caia no mar durante alguma tempestade intensa nos próximos anos.

Andando pela trilha que ladeia a baía, vendo os rochedos e o Eiðiskollur

                Quem quiser conhecer os dois rochedos de perto e de um ângulo diferente, existe uma trilha que sai de Eiði e galga a encosta suave do Eiðiskollur, chegando ao seu topo gramado bem acima dos rochedos. Aliás, o formato do Eiðiskollur visto a partir da praia de Tjørnuvík me fazia lembrar de uma baleia vista de costas prestes a devorar os incautos ex-gigantes. Já que existe uma lenda, que tal  incrementá-la introduzindo um cetáceo glutão?


⏩➧ Este é o quarto post da série sobre Faroé. Para visualizar os demais, acesse  Ilhas Faroé, um paraíso nórdico inexplorado.

 Postado por  Marcelo Schor  em 18.09.2016 
           

2 comentários:

  1. Marcelo, estou viajando pelas ilhas Faroé pelo seu blog, FANTÁSTICO!!! Neste passeio, a que horas vc. saiu da capital e retornou a ela? Já sabia direitinho a hora da volta? (Vou continuar de chateando por mais alguns meses, ok? :-)

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    1. Pavlos, com relação a Tjornuvik, eu saí da rodoviária da capital no início da tarde. Primeiro se toma a linha 400 para Klaksvik e se desce em Oyrarbakki para pegar o 202. É só informar ao motorista em Tórshavn que se deseja ir para Tjornuvik que ele avisará quando chegar ao ponto da conexão. Fiquei em Tjornuvik pouco mais de uma hora. Deu tempo de sobra para passear pelas redondezas. Sim, eu tinha todos os horários das linhas, acessados pelo site ssl.fo/en, da empresa de ônibus. De qualquer forma, é bom perguntar ao motorista ao se saltar no ponto final de Tjornuvik a que horas o ônibus retornará.

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