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Faroé: as Ilhas do Norte


O fiorde de Árnarfjordur na ilha de Bordoy em Faroé
O fiorde de Árnarfjorður na ilha de Borðoy

         As Ilhas do Norte são as seis ilhas meio grudadas umas nas outras na parte setentrional de Faroé  que no mapa do arquipélago lembram dedos longos de uma mão quebrada. Três delas estão conectadas por rodovia às outras ilhas faroesas. As demais, só por barco ou helicóptero. De todos os tours de que participei, este era sem dúvida o mais misterioso, pois não sabia praticamente nada do que veria durante o dia. Foi também o mais longo, onde chegamos ao ponto mais longínquo possível da capital por estrada, a charmosa vila de Viðareiði (tratando-se de um arquipélago compacto, essa "grande" distância equivale a 95 quilômetros). E se no tour anterior, quando conhecemos a ilha de Sandoy, o  relevo era menos acidentado, aqui foi o contrário, o cenário adquiriu tons mais dramáticos com as montanhas mais altas das Ilhas do Norte. É também lá que vemos com mais precisão a  influência gigantesca da pesca no dia a dia dos faroeses.

Mapa de Bordoy, Vidoy e Flugoy em Faroé
As paradas do tour às Ilhas do Norte 

          Nossa primeira parada depois de partir de Tórshavn, ainda na ilha de Streymoy, foi em Við Áir, numa estação baleeira abandonada. Ali eram processados os derivados das baleias capturadas na caça, como carne e óleo.  A estação  foi construída por noruegueses em 1905 e operou regularmente até 1984. O maquinário enferrujado jogado no pátio fronteiro da estação faz com que o lugar tenha um aspecto lúgubre, mas hoje ele é um centro de pesquisas de pesca e há planos de transformá-lo também em um museu.

Estação baleeira em Vid Áir, Faroé
A estação baleeira em Við Áir

         Atualmente não há mais estações baleeiras em Faroé, mas a caça às baleias continua e é um tema muito polêmico a nível internacional. Verdade seja dita, a caça hoje se restringe a uma espécie, as baleias-piloto, que não está ameaçada de extinção. Além disso, a atividade, chamada de grindadráp, não tem fins comerciais. As baleias são cercadas pelos barcos e conduzidas até uma das baías rasas onde a grindadráp é permitida. Lá os caçadores fazem um corte profundo na medula espinhal do cetáceo, com morte rápida, e a carne é repartida entre a população assistente para consumo - a exportação é proibida. O país responde aos críticos com a informação de que se trata de uma tradição cultural, remanescente da época dos vikings. Mas realmente só a visão de fotos das águas da praia tingidas de vermelho já é deprimente. Nos últimos dez anos foram abatidas cerca de 6.000 baleias em águas faroesas, e desde o ano passado os caçadores são obrigados a usar uma faca especial inventada recentemente, de forma que o animal sofra o menos possível. A título de informação, o filé de baleia estava sendo oferecido num restaurante de Tórshavn por 320 coroas, cerca de 48 dólares. Quem come a iguaria com frequência levou um susto nos últimos tempos com a descoberta de níveis altos de mercúrio na carne dos cetáceos, o que levou o governo a recomendar moderação no seu consumo. 

Quadro de Samal Mykines exposto na Galeria Nacional de Arte em Tórshavn
Quadro "Whale slaughter" ("Massacre de baleia"), por Sámal Mykines, exposto na Galeria de Arte de Tórshavn

             Logo após Við Áir, passamos por uma ponte para a ilha de Eysturoy (esta é a mesma ponte que mencionei no post sobre Tjørnuvík). Gozado é ouvir o comentário algo jocoso de que se tratou da primeira ponte que atravessou o Atlântico por ligar duas ilhas no meio do oceano. O próprio nome Eysturoy - ilha do leste - já nos avisava que ainda não tínhamos chegado às Ilhas do Norte. Alguns quilômetros adiante fizemos uma parada rápida em Leirvík para apreciar mais uma ruína de fazenda viking do século X, mais ou menos na mesma situação daquela que vimos em Kvívík. A ruína em Leirvík  foi descoberta na década de 80, mas da mesma forma que a outra os artefatos nela encontrados estão em exibição atualmente no Museu Nacional de Tórshavn.




Ruínas vikings em Leirvik, Faroé
As ruínas vikings de Leirvík

            Leirvík é o ponto de entrada de uma obra de engenharia que é o orgulho local: o túnel submarino, um dos dois existentes em Faroé. Com 6,3 quilômetros de extensão, o Norðoyatunnilin liga Eysturoy a Borðoy, a maior e mais importante das Ilhas do Norte. Inaugurado em 2006, o túnel foi construído por uma firma norueguesa (afinal, a Noruega é especialista em túneis complexos, conforme eu verificaria in loco quatro dias mais tarde ao voltar de um passeio nos fiordes para Bergen) e retirou Borðoy do isolamento rodoviário, sendo um passo a frente no sonho faroês de interligar suas ilhas principais . O túnel desce a 150 metros de profundidade e há pedágio no valor de 100 coroas. Não espere ver cabines de cobrança, o pedágio deve ser pago em alguns postos de gasolina das estradas. Quem não pagar em até três dias recebe uma multa dias mais tarde, pois todos os veículos são fotografados.

Nota em 2021: Em dezembro de 2020 foi inaugurado um terceiro e maior túnel, ligando as ilhas de Streymoy e Eysturoy, com três trechos que formam um Y, totalizando mais de 11 quilômetros de extensão. É o primeiro túnel submarino no mundo contendo uma rotatória na interseção das suas três seções. O túnel reduziu o tempo de viagem entre Tórshávn e Klaksvík à metade. 

Túnel que une Eysturoy a Bordoy em Faroé
Trecho a 150 metros de profundidade no Norðoyatunnilin 
       
            Saímos do túnel já na cidade de Klaksvík, mas passamos direto por ela, pois a conheceríamos no retorno. Depois de Klaksvík, a estrada fica bem estreita e o cenário, mais rústico. Logo chegamos a dois túneis em sequência, que não poderiam ser mais diferentes do túnel submarino. Estes túneis, inaugurados na década de 60, com comprimento em torno de dois quilômetros cada, só têm largura para um veículo. Para piorar, não possuem qualquer iluminação. Túneis deste tipo aparecem eventualmente nas ilhas mais afastadas de Tórshavn e há regras próprias para se transitar neles. Uma das mãos do túnel tem precedência sobre a outra. No lado da outra mão  de cem em cem metros há recuos sinalizados por uma placa com um M (segundo o guia significando "meeting point"), em que os carros têm que entrar e aguardar até que o veículo na direção contrária passe. Se o outro veículo for um ônibus ou caminhão, o carro tem que entrar esteja ou não na mão prioritária. Mesmo não sendo eu o motorista, foi bem estressante ver os carros vindo na direção contrária no túnel escuro e, faltando poucos metros para uma eventual colisão, entrarem num dos tais recuos - a van em que estávamos é considerada um tipo de ônibus e portanto sempre possui prioridade. Um motoqueiro simplesmente não entrou no recuo e ficou encostado (e quase imprensado) com a moto junto à parede do túnel, suscitando um comentário seco em inglês do nosso guia motorista: "Este cara não é daqui...". A situação piora em dias chuvosos, pois parece que as onipresentes ovelhas têm a ideia excelente de se abrigar onde? Nos túneis, claro. Mas toda a apreensão é logo recompensada com a paisagem; se não me falha a memória a foto que abre o post foi tirada na saída de um dos dois túneis.

Túnel em Bordoy, Faroé
O túnel estreito em Borðoy. Repare na placa mais acima indicando a prioridade do tráfego.

            Nosso objetivo era alcançar a vila de Viðareiði, situada no extremo norte do arquipélago na ilha de Viðoy (que significa "ilha da madeira", um nome esquisito para uma ilha sem árvores, sendo mais uma referência aos detritos que navegam pelo oceano e aportam em Faroé). Nem reparei quando trocamos de ilha, pois Borðoy e Viðoy são ligadas por uma estrada em aterro. Passamos a margear o estreito de Hvannasund entre as ilhas e um criadouro de salmões chamou a atenção no meio das águas. O salmão é o carro-chefe dos peixes exportados por Faroé - os produtos derivados de pesca são responsáveis por 95% do total do comércio de exportação no país. Os fiordes e estreitos do arquipélago com sua água cristalina em temperatura constante fornecem condições ideais para sua criação. O salmão cresce sem o uso de antibióticos e é considerado de alta qualidade, sendo sua carne  exportada principalmente para Rússia, Inglaterra e Estados Unidos, onde compõe sushis. As exportações para a Rússia tiveram um incremento enorme com as sanções econômicas entre esse país e a União Europeia ocorridas desde 2014 (não custa lembrar que Faroé, ao contrário da Dinamarca, não pertence à UE).

Criação de salmão em Vidoy, Faroé
Criadouro de salmões no estreito Hvannasund

           Viðareiði (lê-se viaróii) fica situada num istmo e possui portanto duas costas. Está na única parte relativamente plana de Viðoy, com certeza a mais desolada das seis ilhas faroesas que visitei, já que possui montanhas altas caindo direto no estreito ou no oceano e conta com somente uma estrada, a que percorremos, ligando suas duas únicas vilas. Como é comum nessas localidades, a igreja do final do século XIX sobressai entre o casario com teto gramado. O templo, que se encontrava fechado, é conhecido por guardar prataria presenteada pelo governo britânico em reconhecimento ao auxílio prestado por Viðareiði aos sobreviventes de um naufrágio acontecido em 1847.


Vista de Vidareidi, Faroé
Viðareiði

Ancoradouro de Viðareiði com a ilha de Fugloy ao fundo

           Voltamos então pela estrada única até alcançarmos novamente Klaksvík, a segunda cidade em população de Faroé, com 4.600 habitantes. Sua localização é peculiar, entre dois fiordes, se esparramando pelas duas margens do fiorde ao norte. No inverno, o visual dos morros nevados que se elevam das margens é bem bonito. Por sinal, o morro à sua frente na boca do fiorde fica na ilha vizinha de Kunoy. A cidade é um centro pesqueiro importante no país e um dos seus portos principais, recebendo também cruzeiros. Além disso, sedia o Festival de Verão em um fim de semana de agosto, quando cantores faroeses e internacionais vêm se apresentar na cidade para milhares de pessoas, um feito e tanto se considerarmos a população pequena do país. Os jovens que frequentam o festival ainda aproveitam a cervejaria instalada na cidade, a Föroya Bjór, uma das duas existentes em Faroé.

Vista de Klaksvík, Faroé
A cidade de Klaksvík

           Em termos turísticos, a atração principal de Klaksvík é a Christianskirkja, uma igreja construída em 1963 em estilo nórdico moderno. A igreja é  dedicado aos pescadores e marinheiros que perderam sua vida na época da Segunda Guerra Mundial. Do teto pende um barco a remo que tem uma história e tanto - inicialmente usado pelo pároco de Viðareiði nas suas andanças pelas ilhas vizinhas, foi depois utilizado no transporte da ilha de Fugloy, sendo o único barco sobrevivente de quatro embarcações que enfrentaram uma tempestade terrível em 1913. O interior da igreja é muito bonito e até o refeitório do subsolo surpreende, com doze quadros circulares retratando passagens do Novo Testamento.

Interior da igreja de Christianskirkja em Klaksvík, Faroé
Interior da Christiankirkja em Klaksvík (o barco está acima de mim e não aparece na foto)

Parede do refeitório na Christiankirkja

           De volta a Eysturoy paramos com a tarde já avançando num lugar sem atrativos para o almoço bem tardio, incluso no preço. Neste caso eu preferia ter almoçado em Klaksvík; saí da cidade com a sensação de não tê-la conhecido direito. A primeira parada após a refeição foi em Toftir na loja da Navia, a maior produtora de artigos de lã no país. Normalmente acho estas paradas em lojas uma perda de tempo, pois sempre penso que poderia estar visitando uma atração natural ou cultural ao invés de ficar olhando produtos à venda, mas aqui abro uma exceção, pela escassez de lojas em Faroé.
  
            A última parada foi num dos morros da ponta sul perto da vila de Nes, onde estão fincadas três turbinas de vento geradoras de eletricidade, que podem ser vistas desde Tórshavn. O sol tímido saiu por alguns instantes em meio a um nevoeiro ligeiro, causando um efeito muito bonito com as turbinas sobressaindo na paisagem. Há várias turbinas em operação em Faroé, aproveitando a força dos ventos abundantes no arquipélago. A energia eólica corresponde a 23% de toda a energia elétrica gerada em Faroé, o que junto com as usinas hidroelétricas faz com que mais da metade da energia produzida no país seja não poluente. A meta é chegar em 2030 ao nível de 100%. Há inclusive um projeto para se aproveitar como energia outro recurso abundante na região, as ondas do mar.

Turbina geradora de energia em Nes, Faroé
Uma das três turbinas de vento em Nes

            Apesar de o tour não ter sido ruim, foi o que achei o mais fraco dos quatro realizados. Não foi só o dia muito encoberto, mas também o fato de não haver uma atração que me fizesse ficar de queixo caído, como nos outros três. Pois é, fiquei mal acostumado... Para compensar, o próximo post é dedicado ao tour que para mim foi o de paisagens mais belas, às vilas de Bøur e Gásadalur.


⏩➧ Este é o sétimo post da série sobre Faroé. Para visualizar os demais, acesse  Ilhas Faroé, um paraíso nórdico inexplorado.


 Postado por  Marcelo Schor  em 26.10.2016 

3 comentários:

  1. Caro Marcelo, nesta região vc. viu algo parecido com isto?
    Streymoy e Saksun. Passaremos por uma antiga estação baleeira. No caminho veremos Fossá, a maior cachoeira das Ilhas Faroe. Continuando pela região de Eiði passaremos pela montanha mais alta do país Slættartindur, com 882 metros de acima do nível do mar. Seguimos para a região de Vestmanna, onde faremos uma navegação por cenários incríveis, incluindo grutas e penhascos de mais de 450 metros de altura. A região repleta de aves marinhas como puffins e gaivotas. Em meio a magnífica natureza do Atlântico Norte, o homem sente-se muito inferior, e você entenderá por que a cultura das Ilhas Faroé está tão profundamente enraizada no respeito pelas forças da natureza. A tarde seguiremos para o hotel na região de Gjógv.

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    1. Pavlos, a estação baleeira é Við Áir, apresentada neste post. As outras atrações ficam próximas a Tjornuvik. Gjógv e Eiði são acessíveis por ônibus intermunicipais que saem de Oyrarbakki. Infelizmente Saksun só pode ser alcançada por excursão ou táxi. Infelizmente a excursão para estes lugares era oferecida em um dia da semana em que eu não estaria em Faroé, portanto não pude conhecê-los. Saksun em particular parece ser um local excepcionalmente bonito e fiquei chateado por não ter ido até lá.

      Quanto a Vestmanna, publiquei um post sobre o cruzeiro - http://www.albumdeviagens.com/2016/08/faroe-cruzeiro-falesias-vestmanna.html. Este passeio é imperdível para quem visita Faroé.

      abç.

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    2. Só um adendo: se valerem as regras de 2016 e 2017, a partir de meados de agosto (fim do verão, quando os usuários rareiam) a linha para Gjógv, nº 201, só circula em determinado horário por requisição prévia à rodoviária pelo fone 343030 com antecedência de até duas horas. Se não for tomado este cuidado, pode-se ficar plantado eternamente no ponto de ônibus.

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