Pages

Passeando por Tórshavn - dos museus ao forte

A marina de Tórshavn vista do outro lado da baía

           A maior parte dos turistas que visitam Tórshavn (Havn para os íntimos) se restringe a percorrer a cidade velha na península de Tinganes e a marina com seus armazéns coloridos, nos intervalos dos tours pela costa. A capital faroesa no entanto possui atrações fora desse eixo, apresentando também uma faceta cultural que nos ajuda a entender como vive este povo nórdico tão diferente dos brasileiros e como sobrevive em condições muitas vezes duras.

Escritório de turismo em Tórshavn
O escritório de turismo e a livraria

           A praça principal de Tórshavn, a minúscula Vaglið, está cercada de construções históricas, mas o que mais chama a atenção na praça e nas ruas da cercania é a quantidade de estátuas existentes, muitas homenageando atividades do dia a dia dos faroeses - é só verificar nas fotos do post. Aqui se localizam o prédio da Prefeitura e o escritório de turismo, cada um com sua estátua na porta. O escritório, com sua equipe superprestativa em dirimir as dúvidas dos turistas, divide com a livraria local uma das casas mais bonitas da cidade, sob um teto de grama.

Prefeitura de Tórshavn
Mais uma estátua defronte à Prefeitura. A faixa de interdição foi retirada dois dias depois.

            Mas sem dúvida a construção mais importante na praça é o Løgting, a sede do Parlamento no país. A história do parlamento reflete os acontecimentos do último milênio em Faroé, que vou relembrar de forma sucinta. Populadas pelos vikings desde o século IX, as ilhas passaram a fazer parte do Reino da Noruega. Entretanto, após passar por dificuldades como a Peste Negra, a Noruega se uniu à Dinamarca em 1380. Quando se separaram no século XVI, Faroé continuou sob domínio dinamarquês. Poucos anos mais tarde, com a Reforma Protestante, as vastas áreas pertencentes à Igreja foram confiscadas pela monarquia, que já havia fixado o monopólio comercial. O  Løgting, estabelecido desde os tempos vikings em Tinganes, passou a ter função decorativa até ser fechado em 1816. O monopólio foi encerrado 40 anos mais tarde, e o Parlamento foi reaberto no novo endereço da Praça Vaglið. Com os novos tempos, a insatisfação da população foi crescendo durante a primeira metade do século XX. Na Segunda Guerra Mundial o arquipélago foi ocupado pelos ingleses, e os faroeses puderam se governar. Após a saída britânica, a Dinamarca acabou concedendo o autogoverno permanente às Ilhas Faroé em abril de 1948, após um referendo.

Logting, o Parlamento das Ilhas Faroé em Torshavn
O Parlamento em reformas 

               A casa sede do Løgting é até pequena para abrigar os 33 parlamentares e estava em reforma, sendo preparada para a abertura do período legislativo dali a um mês, em 29 de julho. Esta é a data mais importante do calendário faroês, o Ólavsøka ("Vigília de Santo Olavo", em homenagem ao Rei Olav da Noruega, que morreu em batalha nesse dia em 1030). Os faroeses enchem as ruas da capital, cantam e dançam, acompanhando também competições esportivas terrestres e aquáticas, particularmente de remo, um dos esportes favoritos no país. Os parlamentares abrem seus trabalhos fazendo junto com reverendos a caminhada de um quarteirão entre o Løgting e a Catedral, onde presenciam uma missa, e voltam ao Parlamento, para assistirem a um concerto de música ao ar livre.

A fonte no início da rua de pedestres
                 
         Da Praça Vaglið sai ainda a curta e única rua de pedestres de Tórshavn, batizada em  homenagem ao médico faroês estudioso de radioterapia que foi laureado com o Prêmio Nobel em 1903, Niels Fielsen. Nela há uma fonte com uma estátua de crianças dançando em roda, mas que não jorra água alguma - dizem que os transeuntes saíam invariavelmente molhados ao passarem por ali devido às ventanias habituais, então a fonte foi desligada alguns dias após a inauguração. Nessa rua e nas cercanias você vai encontrar alguns restaurantes, especialmente pizzarias, e serviços como bancos.

Parque Vidalundi em Torshavn
O Parque Viðalundi

                Subindo esta rua ladeira acima, acabamos chegando na parte de Tórshavn que menos parece faroesa - o Parque Viðalundi. O espanto se explica porque não há árvores nos campos das Ilhas Faroé, só gramados. O parque no entanto é muito arborizado, criado em torno de um riacho, e fico imaginando o trabalho que não deve dar para plantar e manter todas aquelas árvores num ambiente hostil a elas. No seu trecho mais elevado, há um lago com patos e um monumento aos marinheiros mortos.

Quadro de Edward Fuglo na Galeria Nacional de Arte em Torshavn
Uma das pinturas faroesas modernas, baseada na obra homônima de Manet: "The Luncheon on the Grass", por Edward Fuglø

              Escondida num dos cantos do parque fica a Galeria Nacional de Arte (Listasavn), reunindo pinturas e esculturas de expoentes da arte faroesa. A entrada custou 65 coroas e o acervo é bastante interessante, indo desde as paisagens e retratos realistas de Sámal Mykines aos quadros modernos de Edward Fuglø, onde animais locais como ovinos e puffins se vestem e agem como humanos. Mas a seção mais inusitada fica no subsolo - uma sala espelhada com 2,2 metros de altura. Com o auxílio dos espelhos, porém, a impressão de profundidade da sala é de duzentos metros para cima e para baixo, gerando um efeito azulado de caleidoscópio muito bonito. Uma experiência ilusória totalmente inesperada.

O efeito multiplicador da sala de espelhos da Galeria de Arte (a foto foi tirada para cima)

           O outro museu da cidade na realidade fica na vila vizinha de Hoyvík, hoje um subúrbio de Tórshavn. Para chegar até lá basta tomar o ônibus circular 2 ou 3 na rua que cruza o fim da rua de pedestres. Não custa lembrar mais uma vez que estes ônibus são gratuitos, e é só perguntar ao motorista onde se deve descer. O museu fica na primeira paralela na direção do mar da rua onde se salta do ônibus; é imperdível para quem quer aprender mais sobre as Ilhas Faroé e seus habitantes.

               O Museu Nacional (Føroya Fornminnissavn) é aquele tipo de museu que reúne quase todo assunto sobre o país que representa. Aqui você vai encontrar desde vestimentas típicas de festas folclóricas até os artefatos que foram retirados das escavações das ruínas vikings de Kvívik, passando pelos adornos e bancos das igrejas em Kirkjubøur e pelas embarcações usadas ao longo dos séculos pelos pescadores. Painéis explicam diversos fatores da cultura e história faroesa, como a atribulada saga da bandeira nacional, criada há 97 anos por um estudante de uma vila do sul (por sinal, a bandeira nada mais é que a da Noruega ou da Islândia com as cores invertidas). O estudante morreu de pneumonia um ano depois, sem presenciar a transformação da sua bandeira no símbolo oficial do país durante a ocupação inglesa, e está enterrado em sua vila natal a poucos passos da bandeira original, exposta na igreja.

            O museu ficou ainda mais interessante nos últimos anos, tendo incorporado o acervo do antigo Museu de História Natural, cujo exemplar mais chamativo é o esqueleto de baleia no subsolo.

Exposição no Museu Nacional de Torshavn
Vestes típicas expostas no Museu Nacional

                O Museu Nacional possui ainda um auditório onde são passados vários filmetes em sequência sobre aspectos da vida em Faroé. O que mais me chamou a atenção foi o que mostrou a chain dance. A dança típica do país tem uma coreografia em círculo (o "chain" da denominação em inglês) com as pessoas de mãos dadas. Canções com versos quilométricos que relatam histórias do passado sempre acompanham a dança. Não há instrumentos e os únicos sons ouvidos são as vozes de todos em uníssono e o bater dos pés, cujo ritmo varia de acordo com o teor das canções. As músicas e passos são conhecidos há muitas gerações, e a dança é executada em todas as ocasiões festivas em trajes típicos. A chain dance teve uma importância enorme para as Ilhas Faroé, pois após a Reforma Protestante a Dinamarca coibiu o  uso do idioma faroês nas escolas e nas igrejas, e o dinamarquês foi então usado na comunicação escrita. O faroês passou a ser um idioma somente falado, que teria se extinguido se não se mantivesse nas danças folclóricas e consequentemente na memória do povo. Em meados do século XIX um estudioso coletou as muitas letras das canções e criou a versão escrita da língua, que com poucas alterações é a usada hoje por toda a população no dia a dia, algo inimaginável há 150 anos.
O belo caminho do Museu Nacional ao Museu ao Ar Livre
O Museu ao Ar Livre

                  O Museu Nacional conta com uma espécie de anexo a algumas centenas de metros, mais perto do mar, incluído no tíquete do ingresso de 40 coroas. O Museu ao Ar Livre (Hoyvíksgarður) já vale a visita só pelo caminho até lá. Está instalado em uma antiga fazenda de ovelhas que pertencia à coroa dinamarquesa e era arrendada aos faroeses, uma das chamadas Fazendas do Rei. A fazenda existiu desde a Idade Média até 1920 e mostra em suas casas conservadas a vida dos camponeses no início do século XX, com mobília da época, incluindo o fogão pesadão e o telefone grudado na parede. Dá para imaginar como era (e é) duro trabalhar e cuidar de uma fazenda bem do lado do oceano, sem proteção alguma contra as ventanias e tempestades gélidas. Esta deve ser também a razão de o museu só funcionar no verão, de meados de maio a meados de setembro. Quem for visitá-lo não precisa fazer todo o percurso de volta ao Museu Nacional, o ônibus passa pela estrada que atravessa a trilha entre os dois museus.
                 
Forte Skansin em Torshavn
O Forte Skansin

           Para os que quiserem tirar fotos do panorama da cidade, a dica é visitar o Forte Skansin, situado numa colina baixa diante da rodoviária e do terminal de ferries. O forte conta com um farol e foi construído em 1580 com a missão  de defender Tórshavn de ataques piratas, mas não conseguiu o seu intento; a cidade foi saqueada algumas vezes por turcos, franceses e até ingleses. Diante de tanto fracasso, Skansin foi totalmente reconstruído pelos dinamarqueses dois séculos depois, que ali instalaram uma guarnição. Ironicamente, serviu como sede da marinha inglesa durante a Segunda Guerra Mundial. Além da vista ótima para Tinganes e o mar, a fortaleza ainda conta com alguns canhões instalados pelos dinamarqueses e outros pelos britânicos. 

Vista de Torshavn desde o Forte Skansin
Vista de Tinganes a partir do Forte Skansin. A cúpula triangular negra pertence à outra igreja de Tórshavn.

            Falando em mirantes, por indicação do guia de viagens, visitei o obelisco do Monumento ao Rei, que foi apresentado como "tendo a melhor vista de Tórshavn". Além de ser um tanto difícil de se achar, a vista a partir do monumento me decepcionou, já que não dá para divisar a península de Tinganes, encoberta por residências.

Os faroeses se preparam para torcer dali a alguns minutos pela vizinha Islândia no jogo da Eurocopa.

             A localização estupenda do Hotel Tórshavn (aliada à falta de isolamento acústico do quarto; foi impossível não saber que algo estava ocorrendo) me permitiu acompanhar alguns eventos que aconteceram colados ao hotel. Na tarde em que choveu houve uma apresentação de uma banda pop local com um nome bem bolado, Danny & the Veetos, que tocou músicas bacanas em inglês e faroês. No dia seguinte, montaram um telão para a população torcer pela Islândia em um jogo da Eurocopa. Aliás, dava uma certa agonia não entender nada do que o locutor dinamarquês falava antes da partida - a única palavra que eu consegui captar foi "Ronaldo", afinal o jogo era contra o futuro campeão Portugal. E  no último dia da minha estadia assisti ao concerto de clarinete na catedral, que já havia mencionado no post anterior. Três programas gratuitos e variados para preencher o horário antes do jantar.

             No próximo post, uma incursão às mais rústicas Ilhas do Norte.


⏩➧ Este é o sexto post da série sobre Faroé. Para visualizar os demais, acesse  Ilhas Faroé, um paraíso nórdico inexplorado.

 Postado por  Marcelo Schor  em 17.10.2016 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O comentário será publicado após aprovação