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São João del-Rei, a cidade dos sinos


Rua de São João del-Rei com a Igreja do Carmo ao fundo

          Em setembro passei um fim de semana na mineira São João del-Rei. Uma das cidades históricas brasileiras mais significativas, junto com a vizinha Tiradentes.  Enquanto Tiradentes parece totalmente parada no tempo, São João apresenta um cenário equilibrado, onde o antigo convive de forma harmônica com aspectos mais modernos. São João del-Rei está muito bem conservada, apresentando um centro histórico compacto e lindo, com ruas características, muitas ainda com calçamento antigo, além das igrejas barrocas ricamente decoradas que fazem a fama do sul de Minas Gerais. 


Mapa de São João del-Rei
Mapa de São João del-Rei, com os locais mencionados 

           Fiquei surpreso com a grafia do nome da cidade que consta nas placas; podia esperar até um ípsilon no final ao estilo de Paraty, mas não um hífen... São João del-Rei foi fundada por bandeirantes paulistas em 1713, auge da exploração do ouro, sendo batizada em homenagem a João V ("El Rei"), monarca de Portugal. Com o declínio das jazidas e o arrocho pelas autoridades portuguesas, veio a Inconfidência Mineira, que marcou a região. Hoje com 88.000 habitantes, é um animado centro universitário  repleto de repúblicas, bares e motocicletas dirigidas por jovens, que singram de forma mais fácil as ladeiras e ruelas estreitas da cidade.

Córrego do Lenheiro com a Ponte da Cadeia

             Cheguei a São João por ônibus vindo do Rio, distante 340 quilômetros. Apesar de oficialmente o tempo do percurso ser de 5h30min, a viagem pelos veículos da Viação Paraibuna demorou mais de seis horas tanto na ida quanto na volta, parando em várias cidades no caminho. Para entrar nas rodoviárias de Petrópolis e Barbacena, o ônibus nem saiu muito do trajeto, já que os terminais ficam junto à estrada, mas o desvio foi grande em Barroso e especialmente Tiradentes, tornando a viagem ainda mais cansativa. Pelo menos os ônibus novos tinham wi-fi para ajudar a matar o tempo. A rodoviária de São João del-Rei fica a 1,5 quilômetro do centro histórico.

Teatro Municipal, inaugurado em 1893

           Hospedei-me num hotel de quarto simples, o Lenheiros, mas muito bem localizado na avenida principal, a Tancredo Neves, em frente à pracinha onde as duas estátuas dos ícones regionais, o próprio Tancredo e Tiradentes, se encaram. As referências a Tiradentes morrem ali, mas Tancredo está presente em vários monumentos e construções da cidade, a começar pelo Memorial Tancredo Neves, um solar à beira do córrego. Ao preço de dois reais se pode conhecer toda a trajetória deste político nascido e radicado na cidade. Tancredo ocupou quase todos os cargos possíveis na política brasileira - vereador, deputados estadual e federal, ministro, governador, primeiro-ministro (um dos três que o Brasil teve) e finalmente a presidência que não conseguiu exercer devido à doença que o mataria em 21 de abril de 1985, pouco mais de um mês após a data marcada para sua posse no Palácio do Planalto. Por coincidência este também é o dia da morte de Tiradentes quase dois séculos antes. Tendo na época acompanhado pela TV todos estes momentos trágicos, me emocionei com os documentários  mostrando a comoção causada na população são-joanense.

Estátua de Tancredo Neves diante do memorial em sua homenagem

          São João é conhecida como "a cidade dos sinos", onde a maneira pela qual os sinos são tocados denunciam o tipo e lugar do evento que está acontecendo. O número de toques e repiques indicam detalhes como o cargo de quem celebrará a missa e o sexo da pessoa falecida em caso de funerais. O código, criado nos tempos coloniais, é passado de sineiro para sineiro através das gerações. Os sinos, cada um com seu nome fundido em alto relevo, tocam diversas vezes ao dia, e tive uma experiência nada agradável com eles: na madrugada da primeira noite em que cheguei, fui acordado às quatro da manhã pelo seu toque insistente. Os sinos badalaram por uma hora, seguidos de queima de fogos. Bastante intrigado, inquiri os funcionários do hotel quando fui tomar o café da manhã horas depois e me explicaram que justamente aquele sábado era dia de Nossa Senhora das Mercês, o último dia de uma semana de celebrações.

Rua de Santo Antônio

            O centro é cortado pelo Córrego do Lenheiro, que causa uma certa estranheza por ser um canal bem estreito correndo num leito gramado bem mais largo. Em época de chuvas fortes o córrego se transformava em rio caudaloso causando enchentes, daí a diferença de medidas. Ligando os dois lados do centro há pontes bem bonitas, das quais a mais chamativa é a Ponte da Cadeia. Feita com blocos de pedra ligados por argamassa de óleo de baleia, a ponte em estilo romano foi erguida em 1798 após a ponte anterior de madeira ter cedido durante uma enxurrada do rio, quando causou a morte do pároco local que estava passando com uma procissão no Dia de Finados. A ponte tem esse nome por estar localizada em frente à antiga cadeia, que dividia o sobrado com a câmara municipal. O prédio de meados do século XIX hoje sedia a Prefeitura.

Ponte da Cadeia e o prédio da Prefeitura

            A maior parte dos visitantes vai a São João del-Rei para conhecer as igrejas do centro histórico, e a que mais chama a atenção pelo exterior é a  de São Francisco de Assis, construída no final do século XVIII com projeto do Aleijadinho. A praça em frente conta com altas palmeiras imperiais e tem o formato dos canteiros lembrando uma lira ou um sino, conforme a versão que se lê - como não vi sinal das cordas do instrumento representadas, fico com a versão do sino, mais condizente com a cidade. O cemitério existente atrás da igreja é onde estão enterrados Tancredo Neves e sua esposa Risoleta. Visitei a igreja em duas ocasiões, numa ensolarada sexta à tarde, quando estava fechada, e numa nublada manhã de domingo quando os fiéis estavam começando a chegar para a missa. Nesta segunda vez ao me aproximar da sacada já fui importunado por pessoas se oferecendo como guias da cidade, uma praga sobre a qual já tinha lido.

Igreja de São Francisco de Assis na sexta-feira

Praça fronteira à Igreja de São Francisco de Assis no domingo

           As demais igrejas que fazem a fama de São João estão do outro lado do córrego. Diante do Largo do Rosário, a igreja de mesmo nome tem estilo bem mais simples. É a igreja mais antiga desse  lado do córrego, datando de 1719. Curiosamente, tinha uma só torre até oitenta anos atrás, quando ruiu e foi substituída pelas duas torres atuais.  O largo, um bom exemplo das fachadas coloniais que se multiplicam pela cidade, ainda sedia o Solar dos Neves, que pertence à família de Tancredo e foi sua residência,  não estando aberto a visitação.

Largo e Igreja do Rosário, com o Solar dos Neves à direita

           De cada extremidade do Largo do Rosário saem duas ruas icônicas da cidade. A primeira, a sinuosa Rua de Santo Antônio, fazia parte da Estrada Real, por onde saía o ouro rumo aos portos. A rua, calçada ainda em pé de moleque, apresenta algumas das casas mais antigas de São João del-Rei, que lhe renderam o apelido de "rua das casas tortas".

Rua Getúlio Vargas e Igreja do Carmo

           Da outra extremidade sai a rua Getúlio Vargas, onde se localiza a Catedral, imprensada pelas construções vizinhas. Seu  interior é um dos mais opulentos da região, rico em decoração barroca com ouro. Já a igreja onde a rua termina é a de Nossa Senhora do Carmo, de 1734, cujo interior não poderia  contrastar mais com o da Catedral,  predominando o branco com alguns detalhes em ouro.  A igreja é uma das favoritas para casamentos, e com efeito havia um acontecendo no sábado à noite, com direito a um carro da época dos anos dourados estacionado à sua porta aguardando os nubentes. Era o que me faltava para sacramentar a sensação de volta no tempo ao perambular à noite pelas ruas agradáveis do centro histórico.

O belo interior da Catedral de São João del-Rei

Casamento na Igreja do Carmo

          Toda essa área, ainda próxima ao córrego, é formada por ruas sem muita inclinação. A situação muda de figura para quem deseja visitar a Igreja das Mercês. Situada numa pequena colina atrás da Catedral, é acessada por uma escadaria, e do seu amplo pátio se obtém uma vista geral da cidade. Esta era a igreja onde aconteciam as festividades no sábado, e estava lotada de fiéis comemorando a data. Olhando-se a fachada com mais atenção, se nota que a torre se destaca do restante da construção; na realidade, é ligada ao restante da igreja por um corredor estreito.

Igreja das Mercês

           Vale a pena perambular pela região entre a Catedral e a Igreja das Mercês para apreciar os detalhes do casario. No amplo largo em ladeira que conduz às escadarias da igreja, em frente ao hospital,  se encontra por exemplo um pelourinho, como eram chamadas as colunas em lugares públicos utilizadas até o século retrasado para expor e castigar escravos e criminosos. Com o fim da escravatura em 1888, a maioria desses artefatos foi destruída pelos próprios ex-escravos, mas o de São João resistiu ao tempo.

Largo que leva à escadaria da Igreja das Mercês

          São João del-Rei é uma cidade rica também em museus. Além do Memorial, visitei ainda o Museu Regional. O museu não estava na minha lista original, mas começou a chover e resolvi entrar no amplo sobrado de três andares construído em 1859 como residência de um comerciante abastado. Aqui se encontram utensílios, instrumentos musicais, esculturas, documentos e mobília dos séculos passados. Chama a atenção um belo órgão de tubos confeccionado no século XVIII e instalado num armário em madeira de jacarandá, que foi recuperado recentemente e hoje é tocado em recitais. Achei  o acervo bem interessante, especialmente para quem aprecia História como eu.

Vagão de luxo dos primórdios da ferrovia exposto no Museu Ferroviário

              Dentre os museus que visitei, o mais diferente é o Museu Ferroviário, com entrada gratuita e instalado dentro da própria estação ferroviária. O museu relata a história das ferrovias desde a revolução industrial até a Estrada de Ferro Oeste de Minas, cujo trecho entre São João e Tiradentes foi inaugurado em 1881 e está em funcionamento até os dias de hoje. Além de expor a primeira locomotiva utilizada no trajeto, fabricada na Filadélfia e que transportou D. Pedro II para a inauguração, além de um vagão de luxo daqueles tempos iniciais, o museu extrapola a área de transportes e conta ainda com mostras de relógios antigos e outros artefatos de época. Ótima pedida para passar o tempo antes de se embarcar na maria fumaça rumo a Tiradentes.

A maria fumaça que em minutos me levaria a Tiradentes

              E falando na maria fumaça, o passeio imperdível para quem visita a região acontece somente de sexta a domingo - acesse os horários disponíveis aqui -  com a primeira saída às 10 da manhã.  O percurso até Tiradentes leva quarenta minutos passando por doze quilômetros de campos verdejantes. A passagem custou 60 reais, ida e volta (só de ida custava 50 reais). O vagão ainda possui decoração de antigamente, com  bancos de madeira algo apertados para um casal. A melhor paisagem é a do lado por onde se embarca, à esquerda no sentido de viagem do trem. Agora, atenção, pelo menos na viagem que fiz quem escolheu os vagões da frente teve que vencer um desnível considerável para descer na estação em Tiradentes, pois o tamanho do trem excedia em muito o da plataforma, e os vagões fronteiros acabaram parando fora da estação.

             As inúmeras atrações de Tiradentes serão abordadas num post futuro. No próximo post, começamos a série sobre a incrível região dos fiordes noruegueses.


 Postado por  Marcelo Schor  em 11.12.2016 

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