Quem acompanha meus relatos no blog sabe que sempre incluo um destino menos conhecido nos roteiros que faço. Nesta viagem à Alemanha a bola da vez foi
Erfurt, capital da Turíngia, estado no centro do país. A bela cidade medieval fica a 2h15min de trem de Frankfurt, a 1h50min de
Berlim e a 45 minutos de Leipzig, sendo um importante entroncamento ferroviário e rodoviário. Em termos de atrações, suplanta muitas cidades turísticas badaladas.
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Marktstraße e a Igreja de Todos os Santos, do século XIV |
A
Turíngia é conhecida como "o coração verde da Alemanha" devido à abundante floresta no sul. É uma região tranquila e bucólica, sem cidades grandes - o maior núcleo urbano é mesmo Erfurt, com 210.000 habitantes. Tendo pertencido à Alemanha Oriental, a Turíngia está renascendo após a estagnação das décadas anteriores, mas ainda não conseguiu estancar o decréscimo populacional agravado pelo êxodo para estados com economia mais forte, ocorrido após a reunificação alemã.
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Localização das atrações no centro de Erfurt |
Os turistas estrangeiros ainda não acordaram para o que a Turíngia tem a oferecer. Erfurt em especial é uma cidade histórica e universitária com origem no século VIII. Um punhado de construções singulares desde a catedral à fortaleza constituem um conjunto que a torna diferente e sem dúvida fazem merecer uma visita. Para culminar, foi em Erfurt que estudou Martinho Lutero, o realizador da Reforma Protestante, quando a cidade estava em seu apogeu cultural e econômico.
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Krämerbrücke |
A estação ferroviária fica praticamente no centro de Erfurt e rumei a pé para sua atração mais original, a
Krämerbrücke ("Ponte dos Mercadores"). A ponte de pedra no córrego Breit, tal qual a muito mais famosa Ponte Vecchio de Florença, possui casas construídas sobre seus pilares, só que em estilo enxaimel. Ao se caminhar por ela não se tem a menor ideia de que estamos sobre uma ponte, parecendo que passeamos numa rua típica de uma cidadezinha alemã. Trata-se da única ponte com residências existente ao norte dos Alpes. Minha visita a Erfurt já teria valido a pena só por apreciar esta obra de arte da arquitetura medieval.
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O interior da Krämerbrücke. Alguém diria que se trata de uma ponte? |
Quando andei pelo interior da ponte inaugurada em 1325, uma das suas pontas estava tomada por estudantes sentados que reproduziam em papel as fachadas das casas de três andares que a compõem - repare que eles aparecem no fundo da foto acima. Os andares superiores das 32 casas são residências, enquanto os térreos abrigam lojas pequenas e estúdios de artesãos. Para tornar a passagem ainda mais diferente, uma das duas entradas é feita por um arco sob a
Ägidienkirche, igreja reerguida após um incêndio na época da construção da Krämerbrücke. Sua torre proporciona uma visão interessante da ponte no meio dos telhados.
Há uma ponte mais moderna e sem a menor graça praticamente colada à Krämerbrücke. Quando ela foi planejada no final do século XIX, chegaram a pensar em demolir a ponte medieval. Ainda bem que desistiram da ideia.
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A Ägidienkirche e o túnel de acesso à Krämerbrücke |
A outra extremidade da Krämerbrücke dá na praça onde está situado o escritório de turismo. Nas cercanias encontra-se um beco estreito e antiquíssimo, Waagengasse. Assim como a ponte, ele fazia parte da Via Regia, a estrada que conectava a França à Rússia e por onde fluía o comércio medieval, tornando Erfurt um entroncamento estratégico. Neste beco está a Sinagoga Velha. Remontando ao século XII, é provavelmente a mais antiga sinagoga em uma construção ainda inteira em toda a Europa. Já há alguns anos foi transformada em um museu onde podem se observar centenas de joias e utensílios medievais achados em escavações recentes, escondidos por judeus que viviam na cidade antes de 1349, quando foram expulsos na histeria decorrente da Peste Negra. Junto à ponte uma mikveh (local usado em rituais judaicos de banho de purificação) do século XIII descoberta nas escavações também está aberta a visitação. Ambas as construções foram inscritas como candidatas a Patrimônio da Humanidade junto à Unesco em 2015.
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Atualização: em setembro de 2023 a Unesco as elegeu como novo Patrimônio da Humanidade.
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Visão do Fischmarkt com a estátua Römer, retratando um guerreiro romano. |
Um quarteirão após a praça cheguei a um dos largos mais representativos de Erfurt, o
Fischmarkt ("Mercado de Peixes"). Além de sediar a neogótica Prefeitura, o largo abriga duas preciosidades. A primeira é a
Zum Breiter Herd, um casarão renascentista de 1583 com estátuas na fachada e um friso com pinturas retratando os cinco sentidos. Ao seu lado em total harmonia de estilo está a
Gildehaus, com mais esculturas na fachada, desta vez representando as virtudes da justiça, prudência, coragem e moderação. A Gildehaus é de construção bem mais recente, de 1892.
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As magníficas Zum Breiten Herd e Casa da Guilda no Fischmarkt |
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Detalhe da fachada do Zum Breiten Herd, com as pinturas retratando os cinco sentidos acima do nome do casarão |
A Marktstraße, a rua que sai dali e por onde passam os bondes, acaba na
Domplatz, a praça da Catedral. Sem brincadeira, é uma das maiores praças que já vi na Europa, sensação ampliada pelo grande espaço vazio, sem árvores ou construções. Dominando a praça numa elevação se situam não somente uma, mas duas igrejas dividindo as atenções lado a lado: a própria Catedral de Santa Maria e a Igreja de São Severo, acessadas por uma escadaria de 70 degraus situada entre elas, ótima para tirar fotos da praça.
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A Domplatz, vista da escadaria das igrejas, sendo preparada para algum evento |
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Catedral foi erguida a partir do século XIII no local onde existia uma capela mencionada por São Bonifácio no ano 742 - ele já chamava o lugar
Erphesfurt. Vale a pena conhecer seu amplo interior, valorizado por treze vitrais altos com cenas bíblicas e por um candelabro de bronze mais antigo ainda, do ano 1160, onde a estátua de um homem barbado segura um castiçal em cada braço levantado. Já a vizinha e também gótica
Igreja de São Severo foi construída pouco depois e se destaca pelas suas três torres, guardando o túmulo do santo que homenageia. A entrada nas duas igrejas é gratuita.
Na torre da catedral badala o maior sino medieval da Europa, nomeado
Maria Gloriosa. Glorioso realmente ele é: com 2,5 metros de diâmetro, dois de altura e onze toneladas de peso, o instrumento foi instalado em 1497 e é conhecido pela beleza do som que emite.
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A Catedral e a Igreja de São Severo |
Num dos cantos da Domplatz, sobre outra colina jaz a
Cidadela Petersberg, uma das maiores fortalezas barrocas preservadas na Europa (pois é, Erfurt é campeã em atrações com superlativos). Havia um mosteiro no topo do morro quando em 1665 os Eleitores de Mainz, que na época controlava Erfurt, decidiram erigir lá uma fortaleza. O objetivo era barrar eventuais revoltas assim como a crescente Reforma Protestante. A grossa e alta muralha da Cidadela foi construída em forma de estrela irregular, a mais eficiente para defesa contra tropas inimigas que se aproximassem. As pedras para sua construção vieram da derrubada de igrejas - havia tantas abadias e templos em Erfurt na época medieval que a cidade detinha o apelido de "Roma da Turíngia" pela quantidade de pináculos no horizonte. A muralha sobrevive até hoje, assim como os oito bastiões espalhados por ela, cada um batizado com um prenome masculino.
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A imponente entrada da Cidadela Petersberg sob a Casa do Comandante, com o Bastião Killian à esquerda. |
A muralha maciça com dois quilômetros de extensão realmente impressiona o visitante que sobe a rampa na colina, e mais surpreendente ainda é o interior da fortaleza que a gente descortina ao cruzar a passagem no portão - uma área gramada no cume envolta por prédios históricos, onde se destaca a
Peterskirche, a antiga igreja do mosteiro, erguida no início do século XII, assim como as casernas que abrigavam as tropas de defesa, com aparência de abandono. A Peterskirche, num formato exótico de um galpão ou celeiro, sedia há duas décadas as exibições do
Fórum de Arte Concreta.
Nos porões da Cidadela Petersberg há uma rede intrincada de túneis que podem ser percorridos sob a luz de tochas em tours guiados (em alemão) oferecidos pelo escritório de turismo.
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O interior da Cidadela Petersberg, com a caserna à esquerda e a Peterskirche à direita |
Uma construção moderna e branca sobre pilotis contrasta com as demais num canto do interior da fortaleza, à beira da muralha. É o restaurante
Glashütte, com pratos da culinária alemã, em especial a
Rostbratwurst, a linguiça grelhada que é o orgulho da cozinha turingiana, com regras específicas de preparo. Como a tarde já avançava, subi a sua escada e almocei. Boa refeição numa varanda agradável e coberta, embalada pela vista maravilhosa para a Domplatz e todo o centro da cidade. O serviço foi um pouco lento, mas com aquele cenário ao fundo nem deu para me incomodar.
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Almoço saboroso com vista deslumbrante |
A região ao norte da Krämerbrücke abriga os prédios centenários da Universidade de Erfurt, uma das mais tradicionais e renomadas do país, fundada em 1392, fechada em 1816 e reaberta em 1994. Seu aluno mais famoso foi sem dúvida
Martinho Lutero, que lá estudou Filosofia e Direito. Erfurt está repleta de referências a Lutero, entre os quais o
Augustinerkloster, o mosteiro do século XIV onde foi monge por seis anos a partir de 1505, deixando a faculdade. Ele entrou no mosteiro cumprindo uma promessa que fez após conseguir se salvar de uma tempestade violenta. Dois anos depois foi ordenado padre na Catedral. O mosteiro oferece um tour onde se visita a cela de Lutero recriada e uma exibição sobre sua vida e trajetória.
A
Martinsfest acontece todo dia 10 de novembro na Domplatz. A festa é dedicada tanto a São Martinho, padroeiro da cidade, quanto a Lutero, no dia do seu aniversário (e véspera do dia do santo). Pelas fotos que vi, o cenário de uma multidão de pessoas enchendo a praça enorme à noite carregando lanternas chinesas acesas, com as duas igrejas iluminadas ao fundo, é arrepiante. A comemoração deverá ser ainda mais especial em 2017, quando a Reforma Protestante completa 500 anos.
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Nome de rua curioso em Erfurt |
Ao voltar do centro, na última esquina antes da estação me deparei com a
Yuri Gagarin Ring. Estranhei o nome da avenida, se ainda fosse Neil Armstrong... Levou alguns instantes para me lembrar que estava numa cidade que era comunista há menos de trinta anos. Para quem não sabe, Gagarin foi o primeiro homem a viajar ao espaço, um feito soviético que deixou o mundo em polvorosa. O astronauta russo, com apenas 1,57 m de altura, tinha 27 anos em 1961 quando entrou em órbita no auge da Guerra Fria. Visitou Erfurt em 1963, razão pela qual possivelmente não trocaram o nome da avenida após a reunificação do país. Acabou falecendo num acidente aéreo suspeito cinco anos depois. Há ainda um busto em sua homenagem na própria rua - aparentemente a visita foi um grande acontecimento. Por sinal, esta foi a única lembrança que achei no centro de Erfurt do período em que pertenceu à Alemanha Oriental.
No
próximo post, visitamos o fascinante parque da cidade de Kassel.
⏩➧ Este é o nono post da série sobre a viagem pelo sul e centro da Alemanha. Para visualizar os demais, acesse Novo Tour pela Alemanha.
Postado por Marcelo Schor em 03.10.2017
Adoro esses seus posts sobre lugares alternativos na Alemanha!!!
ResponderExcluirOi,Fernanda. Curto bastante visitar cidades fora da rota turística e a Alemanha é um prato cheio nesse quesito. Que bom que você tem apreciado os posts, elogio ainda mais significativo vindo de uma especialista no pais!
ExcluirOi, Marcelo. Tudo bem? :)
ResponderExcluirSeu post foi selecionado para o #linkódromo, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Até mais,
Bóia – Natalie
Tudo certo, Natalie? Obrigado!
ExcluirHá estátua do Freddie Mercury tendo em vista que ele morou 5 anos na Alemanha?
ResponderExcluirFreddie Mercury morou alguns anos em Munique, mas não me recordo de haver estátua em sua homenagem por lá. A situação muda na suíça Montreux, onde uma estátua dele é atração turística, e sobre a qual já escrevi no post: https://www.albumdeviagens.com/2021/02/montreux-vevey-chaplin-freddie-mercury.html
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