Timetables da época (com direito a apreciar a estranha moda vigente para uniformes aéreos no início dos anos 80) |
Dias atrás eu estava arrumando o armário quando encontrei uma pasta empoeirada cheia de quinquilharias guardadas das minhas primeiras viagens ao exterior - foram quatro que fiz com amigos ao longo da década de 80, período de faculdade e de curso de especialização, sendo duas para os Estados Unidos e duas para a Europa. Um festival de boas recordações voltou à minha memória. Alguns destes apetrechos caíram em desuso com o passar do tempo, o que me fez refletir como o ato de viajar se alterou nestes trinta e poucos anos.
A diferença principal era a ausência de internet. Olhando para trás é que nos damos conta como seu advento mudou nossas vidas. Nada de compra de passagens ou reserva de hotéis on-line. Para adquirirmos um bilhete aéreo, recorríamos a uma agência de viagens ou íamos até a loja da companhia de aviação. Recebíamos então aquelas passagens com muitas páginas em carbono, com um trecho de voo em destaque a cada página, e que iam sendo usadas uma a uma nos check-ins. Para verificar com antecedência opções de voos eu tinha em casa os livretos de horário de cada companhia (em inglês, timetable), que continham toda a escala de voos pelo mundo; eu obtinha os livros de timetable nas lojas das companhias aéreas no centro da cidade - havia várias na Avenida Rio Branco ou no térreo dos respectivos consulados. Particularmente me recordo do volume grosso da Alitalia, que mais parecia uma revista, em papel de qualidade excelente e com várias fotos das lindas paisagens italianas. Este se extraviou com o tempo.
Aeroporto Charles de Gaulle, Paris: o primeiro pouso na Europa (mas a foto é de 2011) |
Nessa época havia muitos voos internacionais saindo do Rio, com oferta enorme de ligações para o exterior. Só a Varig voava para 31 destinos espalhados pelo planeta, desde Tóquio até Lagos na Nigéria, incluindo dez cidades europeias. Era raro precisar fazer conexão em voo intercontinental, uma maravilha. Dá vontade de chorar quando se compara com a reduzidíssima malha internacional atual das companhias brasileiras. Que saudade da Varig! Viajei muito por ela.
Voar em classe econômica era bem mais confortável que nos dias de hoje. Maior espaço nas poltronas e serviço mais atencioso. Em tempos de cuidados de segurança menores, não era preciso chegar aos aeroportos com tanta antecedência, tornando a viagem menos cansativa. E claro, nada de aberrações recentes como cobrança pela marcação de assento e pelo despacho de bagagens. Curiosamente um aspecto que evoluiu pouco foi a velocidade dos aviões. Isto se não levarmos em conta o Concorde, o avião supersônico (2.150 km/h) que fazia Rio-Paris em menos de 7 horas, com direito a uma escala exótica no Senegal, de acordo com o timetable da Air France da foto que abre o post - por sinal nela as aeromoças têm o Concorde como pano de fundo. A passagem era caríssima, com direito a caviar e foie gras, mas o espaço no avião era apertado. A linha deficitária foi extinta em 1982, seis anos após sua inauguração, um acontecimento no Rio que chegou a fazer com que o então novo Galeão fosse apelidado de Aeroporto Supersônico durante sua construção. Por um tempo os cariocas passaram a ir passear no aeroporto nas tardes de domingo para ver de perto o bólido narigudo - eu fui. De qualquer forma devia ser ótimo você aterrissar no Rio com o horário somente duas horas mais tarde daquele em que havia deixado Paris.
O Rio era uma das poucas cidades no mundo a receber voos do Concorde - fonte: wikimedia commons Steve Fitzgerald |
Quando chegávamos numa cidade europeia (e já na primeira viagem eu usava e abusava do trem utilizando o passe ferroviário, que tinha desconto para jovens), a primeira providência era nos dirigirmos ao guichê do escritório de turismo da estação de trens, onde sempre havia um setor de hospedagens. Você informava ao sempre atencioso atendente que tipo de hotel desejava, a faixa de preço e eventual localização desejada. Ele entrava em contato telefônico com o hotel, e pronto, indicava a direção a seguir até lá. O único problema é que tínhamos surpresas ocasionais, pois não tínhamos como ver fotos da acomodação como acontece hoje na internet. De preferência, o hotel tinha que ficar perto da estação para podermos ir a pé, hábito aliás que continuo cultivando nas reservas atuais para a Europa.
Para os Estados Unidos, onde as distâncias eram maiores e se usava o transporte aéreo também nos deslocamentos internos, a técnica era diferente. Em cada área de desembarque havia uma seção self-service com um mapa gigantesco da cidade contendo a localização demarcada de vários hotéis. Abaixo dele, telefones para entrar em contato com os hotéis e efetuar a reserva. Era uma tortura para quem não dominava o inglês ou mesmo o sotaque da região.
Aliás, havia passes bem interessantes, adquiridos por um valor que não era absurdo, que permitiam viajar sem limite por um determinado período dentro dos Estados Unidos sem marcar voo, em regime de stand-by. Aparecíamos no check-in e pegávamos os lugares que sobravam no avião. E sempre sobraram, nunca deixamos de embarcar. O preço compensava muito, especialmente se visitássemos cidades das duas costas americanas. Naquele tempo overbooking era um palavrão que os viajantes não conheciam.
Três aspectos dificultavam muito a vida dos turistas de então. Sem a praticidade do euro, implementado só em 2002, cada país da Europa Ocidental tinha uma moeda própria. Era muito chato trocar dinheiro a cada vez que se atravessava a fronteira. Já todos os países do leste europeu, naquele tempo pertencentes à Cortina de Ferro, exigiam visto. E o que atrapalhava mais em qualquer cidade estrangeira: nada de cartão de crédito ou débito, brasileiros não o podiam usar no exterior. As alternativas eram o dinheiro vivo ou o traveller check, que hoje ainda existe mas caiu em desuso.
Até levar a mala dava mais trabalho - não tinha rodinha. Minha fiel companheira foi uma Samsonite cinza-escuro, que carreguei por dezesseis anos. Foi substituída por outra Samsonite cinza, devidamente "rodinhada". E aí me xinguei por algum tempo por não ter adquirido antes uma mala com este acessório indispensável. Por sinal minha norma é viajar leve, com a bagagem nunca pesando mais que treze quilos (pelo menos na ida...).
Por outro lado a ausência de tecnologia no dia a dia tornava algumas atividades bem prazerosas. Uma das minhas preferidas no exterior era o envio de cartões postais, que além da finalidade óbvia ainda tinham o objetivo de informar à família que tudo ia bem com você naquelas lonjuras (ligações telefônicas eram caras e portanto raras de fazer e em alguns países como os do leste europeu, difíceis de obter). Caso o destinatário fosse colecionador de selos, hobby ao qual me dediquei por anos na adolescência, melhor ainda, você contribuía para aumentar sua coleção com os selos do país colados no cartão enviado.
Aliás, havia passes bem interessantes, adquiridos por um valor que não era absurdo, que permitiam viajar sem limite por um determinado período dentro dos Estados Unidos sem marcar voo, em regime de stand-by. Aparecíamos no check-in e pegávamos os lugares que sobravam no avião. E sempre sobraram, nunca deixamos de embarcar. O preço compensava muito, especialmente se visitássemos cidades das duas costas americanas. Naquele tempo overbooking era um palavrão que os viajantes não conheciam.
O euro era algo inimaginável na época (a foto é da sede do Banco Central Europeu em Frankfurt). |
Três aspectos dificultavam muito a vida dos turistas de então. Sem a praticidade do euro, implementado só em 2002, cada país da Europa Ocidental tinha uma moeda própria. Era muito chato trocar dinheiro a cada vez que se atravessava a fronteira. Já todos os países do leste europeu, naquele tempo pertencentes à Cortina de Ferro, exigiam visto. E o que atrapalhava mais em qualquer cidade estrangeira: nada de cartão de crédito ou débito, brasileiros não o podiam usar no exterior. As alternativas eram o dinheiro vivo ou o traveller check, que hoje ainda existe mas caiu em desuso.
Cartão postal enviado aos meus pais durante minha primeira viagem à Europa |
Até levar a mala dava mais trabalho - não tinha rodinha. Minha fiel companheira foi uma Samsonite cinza-escuro, que carreguei por dezesseis anos. Foi substituída por outra Samsonite cinza, devidamente "rodinhada". E aí me xinguei por algum tempo por não ter adquirido antes uma mala com este acessório indispensável. Por sinal minha norma é viajar leve, com a bagagem nunca pesando mais que treze quilos (pelo menos na ida...).
Por outro lado a ausência de tecnologia no dia a dia tornava algumas atividades bem prazerosas. Uma das minhas preferidas no exterior era o envio de cartões postais, que além da finalidade óbvia ainda tinham o objetivo de informar à família que tudo ia bem com você naquelas lonjuras (ligações telefônicas eram caras e portanto raras de fazer e em alguns países como os do leste europeu, difíceis de obter). Caso o destinatário fosse colecionador de selos, hobby ao qual me dediquei por anos na adolescência, melhor ainda, você contribuía para aumentar sua coleção com os selos do país colados no cartão enviado.
Arrumando a mala em Copenhague no último dia da primeira viagem à Europa em 1986. |
Hoje as facilidades são enormes e não saio do Brasil sem ter a viagem esquadrinhada, com reservas de hotéis e de passeios feitas, normalmente via on-line. Mas duas coisas não se alteraram. A primeira foi o hábito de adquirir com antecedência um guia de viagem para estudar o que fazer no destino. Podem me chamar de dinossauro, mas continuo achando o guia indispensável e sempre o levo na mala. E a segunda, que espero que ainda prossiga por muito tempo, é o prazer de viajar. Uma das melhores coisas na vida.
⇨ Já que relembramos os anos 80, clique aqui para ler o post que escrevi sobre um outro hábito dessa década, a correspondência internacional por cartas, onde conto como conheci Salzburgo por cartões postais.
Postado por Marcelo Schor em 31.03.2018
Show, devia ser muito mágico.
ResponderExcluirOutros tempos, sem dúvida. Hoje um amigo que leu a crônica me enviou fotos do serviço de bordo nos anos 60 e início de 70. Impressionante, até chef com chapéu de mestre-cuca tinha! Hoje duvido que aquele carrinho enorme de comida conseguisse passar pelo corredor apertado dos aviões...
ExcluirUau! Não tive essa experiência, minha primeira viagem para fora foi em 2006. Muitas coisas mudaram mesmo, algumas para melhor e outras nem tanto. Mas muito interessante ler o relato!
ResponderExcluirSem dúvida. O que impressiona é que a velocidade em que as mudanças acontecem aumenta cada vez mais. Obrigado pelo comentário.
ExcluirOlá, estou tentando me lembrar o nome da taxa ou imposto que se pagava para sair do país na década de 80, alguém lembra?
ResponderExcluirCaramba, nem me lembrava mais dessa taxa! Não me recordo do nome.
ExcluirNão era "depósito compulsório"? Lembro que era caríssimo, algo como mil dólares por pessoa...
ExcluirÉ verdade, obrigado! Pesquisei agora e o depósito compulsório vigorou entre 1975 e 1979, instituindo uma taxa na época bem cara a ser paga para qualquer viagem ao exterior. Portanto, quando fiz minhas primeiras viagens por conta própria, este depósito já estava extinto há alguns anos.
ResponderExcluirMuito legal, essas recordações. Me lembro de nossa primeira viagem juntos aos EUA em 1983, ainda éramos estudantes de engenharia. Lá fizemos uma estratégia de vôos internos com vouchers que podiam ser usados por 15 dias e incluíam costa-a-costa. Fazíamos uma viagem Rio-Miami-Rio e adquiríamos o voucher com três ou quatro pernas: Miami-Washington, Washigton-Nova York, Nova York-Los Angeles e Los Angeles-Miami. Sendo Los Angeles-São Francisco de carro. Foram cerca de 21 dias muito intensos e com hotéis “descobertos” na hora.
ResponderExcluirEram tempos em que éramos jovens estudantes e (quase) despreocupados...
ExcluirO nome do voucher era VUSA - Visit USA. Será que ainda existe?
ResponderExcluirVocê ainda lembra do nome do voucher? Incrível! Creio que o passe não exista mais. Desde que inventaram as passagens emitidas por milhas é muito mais difícil haver lugar vago no avião em cima da hora.
ExcluirOla Marcelo. Vajei em 1979 e paguei o tal deposito q acho era 12mil cruzeiros. Vc tem ideia de como resgatar essa grana?
ResponderExcluirBom dia. Não faço ideia.
ExcluirPessoal, viajei para os EUA em 1987 (oitenta e sete) e ainda tinha o tal "Depósito Compulsório". Era uma fortuna mesmo.
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