Entrada do Mosteiro de La Trappe |
Meu amigo Haroldo
Teixeira, exímio conhecedor de cervejas, esteve com a esposa na Holanda em maio
último e visitou o Mosteiro La Trappe. Ele aceitou o convite para
relatar aqui sua experiência:
Quando falamos em cerveja,
podemos pensar em diversas variedades e estilos que inspiram paixões e
discussões quanto a qual seria a melhor cerveja. Como apreciador de vários
estilos e cervejeiro caseiro, sempre admirei as cervejas denominadas trapistas.
Tal paixão vem da combinação de três fatores: aromas e sabores complexos e
únicos; teor alcoólico elevado e muitas vezes imperceptível; e toda a mística
da cerveja ser produzida por monges em um mosteiro.
Este último fator sempre gerou
imagens icônicas na minha mente, refletindo um monge na frente de uma panela,
com uma colher em uma mão mexendo o mosto (matéria prima da cerveja, ainda não
fermentada) e um caneco de cerveja na outra mão. Por isso tudo, sempre tive
vontade de conhecer um legítimo mosteiro trapista e quando viajei para a Europa
em maio, surgiu a chance.
O que são cervejas trapistas
Trapista é o produto que segue as regras determinadas pela International
Trapist Association – ITA, uma associação de
mosteiros fabricantes que visa evitar que cervejarias comerciais explorem o nome de maneira inadequada . São três regras simples para
o produto receber o selo:
- Os produtos devem ser produzidos dentro das paredes de um mosteiro;
- A produção deve ser realizada pelos monges ou sob sua supervisão direta;
- A maior parte do lucro deve ser aplicada em trabalhos sociais.
Além da cerveja, há também queijos, vinhos e outros produtos trapistas.
Selo identificador de produtos trapistas |
Tanto cuidado e esmero originam
produtos de qualidade única e inquestionável a preços razoáveis (pelo menos
para os moradores dos países onde estão os mosteiros). Um exemplo é a cerveja
Westvleteren 12, considerada por vários especialistas como a melhor cerveja do
mundo e que pode ser comprada diretamente no mosteiro por menos de um euro a
unidade.
Em termos de
aromas e sabores, cervejas trapistas normalmente apresentam uma mistura
complexa de sabores de frutas (nas cervejas claras, maçãs, peras e/ou frutas
cítricas e nas escuras, ameixas, pêssegos e/ou outras frutas de caroço) com um
leve toque de especiarias (cravo, canela, semente de coentro, entre outras). Este
sabor normalmente é gerado apenas a partir da fermentação de açúcares e nunca
pela adição de frutas ou especiarias.
O teor
alcoólico quase sempre é elevado (de 7% a 14%), porém não se percebe o
sabor do álcool ao provar a cerveja. A espuma é alta e enquanto a cerveja vai
sendo bebida, deixa rastros no copo grudados na parede que são chamados de belgian laces (ou lágrimas belgas). São
servidas em copos tipo cálice (gobblets),
com boca larga, visando ampliar a sensação do aroma ao aproximar o copo da
boca.
As trapistas
podem ser claras ou escuras, sendo encontradas em quatro variedades: Enkel,
Dubbel, Tripel e Quadrupel, que significam os múltiplos de um a quatro em holandês. Muito se discute quanto ao
que isto significa, sem consenso. Normalmente,
quanto mais alto o
múltiplo, maior o teor alcoólico. Enkel e Trippel costumam ser cervejas de
cor clara, do amarelo palha até dourado; já Dubbel e Quadrupel têm cor mais
escura, do vermelho até marrom.
Exemplo clássico de cerveja trapista: Chimay Tripel, servida em gobblet. Observe a espuma consistente, que se mantém colada à parede do copo. Foto tirada no Delirium Café em Bruxelas. |
A origem do nome "Trapista"
Trapista vem da ordem religiosa
denominada Ordem dos Cistercienses Reformados de Estrita Observância ou, de
maneira resumida, Ordem Trapista. Foi formada por uma dissidência da Ordem
Cisterciense, a qual os trapistas julgavam liberal demais. Este movimento ocorreu em 1664, na abadia de
La Trappe, na França. Os membros da ordem passaram a seguir o que denominaram
de “Observância Restrita”, uma interpretação das regras propostas por São
Bento. Estas regras se baseiam em um lema e em quatro votos. O lema é “ora et
labora” – resumidamente, orar e trabalhar, que devem se tornar o modo de vida
do membro da ordem. Já os votos são o de castidade, pobreza, obediência e
fidelidade. O último é um adendo aos votos dos monges beneditinos tradicionais
e exige que o membro da ordem permaneça no mesmo mosteiro até o fim de seus
dias. Ao contrário de outras ordens, não existe a necessidade do voto de
silêncio, porém os monges são orientados a gastar suas palavras apenas com o
necessário.
Em 1790 o governo revolucionário francês decretou o fechamento de todos os mosteiros, com o confisco dos bens. Os trapistas fundam então mosteiros na Bélgica e na Holanda. Westmalle, o primeiro, foi aberto na Bélgica em 1802. Atualmente a ordem trapista congrega 171 mosteiros por todo o planeta (dois no Brasil, o Mosteiro Nossa Senhora do Novo Mundo, no Paraná, e o Mosteiro Boa Vista, em Santa Catarina). No entanto apenas onze marcam suas cervejas como trapistas.
A visita ao Mosteiro da La Trappe
Tudo começou quando recebi um amigo em casa que me trouxe uma La Trappe para bebermos. Lembrei que esta cerveja era produzida na Holanda na Abadia de Konigshoeven e resolvi pesquisar. Para minha alegria, estava aberta a visitação a cerca de duas horas de Amsterdã, por trem e ônibus. Decisão tomada, alongamos nossa estadia em um dia e fomos conhecer a La Trappe.
O primeiro passo foi comprar
nossos ingressos da visita. Você pode até arriscar fazer este passeio sem
comprá-los, mas viajar por duas horas e não poder visitar o mosteiro por falta de ingressos disponíveis seria muito frustrante. É mais prático comprar o ingresso
diretamente no site do mosteiro: https://www.latrappetrappist.com/en/visit-us/.
Não encontrei nenhuma empresa oferecendo algum pacote com transporte e ingresso
e honestamente acho que não vale a pena. O trajeto por transporte
público não é complexo, então se você fala inglês não justifica contratar
traslado até lá.
Estação Central de Amsterdã, ponto de partida |
A Abadia de Koningshoeven está localizada próxima a Tilburg, uma cidade pequena a cerca de 120 km de
Amsterdã. Para chegar lá, a forma mais rápida e prática é
pegando o trem na Estação Central de Amsterdã. É necessário fazer conexão na estação 'S-Hertogenbosch
(cerca de 4 paradas – aproximadamente uma hora de viagem) para pegar novo trem
para Tilburg (mais uma parada – 15 minutos de viagem). Ao solicitar o tíquete de ida e volta a Tilburg na Estação Central, te dão o bilhete com a
validade para qualquer trem e algumas sugestões de itinerário impressas para
você saber onde trocar de trem ao longo do caminho.
Em Tilburg o
ônibus da linha 141 passa ao lado da estação de trem e te deixa a 100 metros da
abadia. Atenção,
porque o ônibus só passa de hora em hora. Como perdemos o ônibus na ocasião, tivemos que tomar um táxi que nos cobrou a bagatela de 20 euros entre a
estação e o mosteiro, cerca de de 4 km de percurso. E não se espante, você vai
saltar em um lugar bem isolado. Afinal, você não esperava um mosteiro no meio de um
grande centro, não? Para chegar à abadia, há uma placa e portaria bem típica que indica que você está no lugar certo.
Placa visível na estrada |
Ao chegarmos nos deparamos com
várias placas escritas em holandês. Como não entendo nada do idioma, tentei tocar o interfone na portaria do mosteiro. Sem resposta. Olhei as
placas e saquei meu google translator. Indicava que deveríamos entrar
por uma porta lateral.
Placa indicadora do mosteiro |
Minha esposa diante da porta de entrada |
Nossa visita estava marcada para
as 11h30min da manhã. Chegamos às 10h45min e tudo estava ainda fechado. Cerca de cinco minutos depois, vários
carros começaram a parar no local, todos aguardando a abertura do espaço aberto
do mosteiro, que além da visitação inclui uma loja, trilha para bicicletas e um
restaurante. Às 11h em ponto, a porta foi aberta. Após atravessar uma trilha bem cuidada de uns 200 metros,
fomos recepcionados no restaurante, onde fomos orientados a aguardar o
início da visita.
Às 11h15min fomos recebidos em
uma sala para visitantes por nosso extremamente simpático e hilário guia, que
se apresentou com um nome impronunciável em holandês, mas que falou que em
inglês equivalia a Tony e em português a Antônio. Para nossa
surpresa, dos cinco grupos presentes no nosso horário, três eram brasileiros, um americano e outro húngaro. Com um dos casais presentes não era
fluente em inglês, o guia lhe forneceu uma cartilha em português, com a
tradução.
Sala onde fomos recebidos |
Tony nos explicou o
que é uma cerveja trapista e um pouco de sua história, sem deixar de citar os
mosteiros “concorrentes”. Já começou a disparar um arsenal de piadas que só
cresceria ao longo do passeio. Na sequência, passou um filme sobre a história
da La Trappe, que explica em maiores detalhes a ordem trapista e seus
princípios.
Seguimos para a visita
propriamente dita. Para não atrapalhar os monges, a visita percorre apenas o
prédio da cervejaria, sem adentrar a igreja ou outras áreas do mosteiro. Começamos passando
pelo portal de entrada do prédio da cervejaria, onde estão esculpidas frases que remetem ao lema da
ordem trapista – ore et labora / orar e trabalhar, que compõem o dia a dia da
vida de um membro da ordem.
Ala onde está a cervejaria |
Sala de produção onde Tony faz a explanação |
Entramos então nas salas onde a
cerveja é efetivamente produzida. Usando um quadro, Tony explica rapidamente o
processo de fabricação de uma cerveja e seus ingredientes. Uma diferença importante é que a La Trappe passa semanas fermentando, ao contrário de outras em que o processo dura de 3 a 4 dias. Outro
segredo das cervejas trapistas e que elas passam por um segundo processo de
fermentação, realizado dentro da própria garrafa. Isso faz com que a cerveja
trapista, ao contrário das outras, fique melhor com o passar do tempo, uma vez
que o fermento continua a trabalhar na cerveja enquanto ela não é aberta.
Tony em seguida nos conduziu à sala onde são
produzidos pães e queijos na cervejaria e selecionou duas vítimas para
serem "novos membros da ordem". Eu por ser calvo e barrigudo, e um colega
húngaro por ter barba espessa.
O momento em que eu e o húngaro ao meu lado fomos "promovidos" a membros da Ordem |
Passamos para um jardim e Tony nos
explicou que ali são plantados os alimentos consumidos pelos monges e
trabalhadores do mosteiro. O mosteiro possui um acordo
com uma associação que emprega deficientes físicos e mentais, os quais atuam nas atividades do mosteiro, dentre elas a cervejaria. Esta é uma das
formas de distribuir o lucro dos produtos e ajudar a sociedade.
Chegou a vez de conhecermos a sala onde a cerveja é engarrafada e preparada para
a distribuição. Apenas a distribuição é realizada
por parceiros, todo o processo de produção e envase é realizado nas instalações
da cervejaria.
Sala de envase |
Para terminar, Tony nos mostrou o local onde a Quadrupel é
envelhecida em barris de madeira para apurar o sabor. A cerveja
nesta modalidade da La Trappe é rara, sendo servida e vendida oficialmente apenas no mosteiro (até achei
um exemplar em uma loja em Bruxelas, mas por cinco vezes o preço do mosteiro).
Envelhecimento da cerveja Quadrupel em barris |
Voltamos à sala onde começamos o
tour e Tony explicou
cada um dos rótulos disponíveis da La Trappe e como deve ser
servido. Cada visitante pôde escolher um rótulo para provar. Minha
esposa escolheu a Isid’or (uma Blonde leve, refrescante e frutada, segundo Tony
sucesso entre as mulheres) e eu pedi uma Quadrupel. Fomos então conduzidos ao
restaurante onde pudemos concluir a degustação e (obviamente) pedir comida e
mais cervejas.
Cerveja escolhida por minha esposa |
Esta é a tal cerveja que só é vendida oficialmente no mosteiro |
Havia várias opções de comida,
para todos os gostos e preços. Desde entradas a cerca de 10 euros (pedimos uma
porção de oito croquetes por este valor) até pratos completos por 30 euros. A
cerveja também era relativamente barata (2 a 4 euros o copo), exceto a
famigerada Oak Aged, envelhecida em barril, que custava 8 euros a garrafa de 750ml.
Mas depois de toda a propaganda do Tony, você acha que eu ia resistir?
O tour inteiro levou cerca de uma
hora e meia e foi todo em inglês. Existe um tour mais longo e com mais degustações,
porém só é oferecido em holandês. Após o almoço, passamos na loja. Levamos dois copos, duas cervejas (uma Bock e uma Oak
Aged) e ótimas recordações. Por fim, ainda demos a sorte de dar de cara com um
legítimo monge trapista. Até inquirimos o balconista da loja se podíamos
bater uma foto com ele, mas o balconista nos relembrou que os monges são discretos e só
usam a palavra quando necessário.
O monge trapista, atrás do balconista |
Tivemos a sorte de conseguir carona até a estação com um casal que estava na visita, sem precisarmos do
ônibus. Se você me perguntar se valeu a pena, é obvio que
como cervejeiro vou dizer que sim. Mais significativo foi o relato da minha
esposa, que achou incrível e algo totalmente diferente para se conhecer. E olha
que ela é fã daquela cerveja com H que o Tony me fez esquecer o nome.
Para acabar, algumas referências
caso você queira conhecer mais sobre cervejas e ordem trapista:
Site da La Trappe: https://www.latrappetrappist.com/en/visit-us/
Site da Ordem Trapista: http://www.ocso.org/
Melhor Texto que já li sobre cervejas trapistas:
Brew Like a Monk – Culture and Craftmanship in the Belgian Tradition – Stan
Hieronymus, Editora Brewers Publications
Quer conhecer outra cervejaria legal? Vá a Bruges e visite a De Halve Maan.
Agradecemos ao Haroldo pelo relato excelente e detalhado.
Texto e fotos por Haroldo Teixeira.
Postado por Marcelo Schor em 21.06.2018
⏬Acesse aqui outros posts sobre a Holanda:
Essa com certeza é uma viagem inesquecível! Parabéns pelo texto!
ResponderExcluirObrigado :)
ExcluirOi, Haroldo. Tudo bem? :)
ResponderExcluirSeu post foi selecionado para o #linkódromo, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Até mais,
Bóia – Natalie
Obrigado! Fico honrado :)
ExcluirNossa amei o relato. Vou tentar fazer quando for a Amsterdâ
ResponderExcluirNão perca a oportunidade. Realmente vale a pena.
ExcluirAmei o post!! Haroldo arrasou e amei as fotos 😍😍
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