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Salem, a cidade das bruxas


Boneca de bruxa na rua principal, Derby Street

            Salem (ou Salém em português) é muito conhecida pelos julgamentos de supostas bruxas ocorridos em fins do século XVII, um dos capítulos mais tristes e marcantes da História dos Estados Unidos. Nada mais apropriado nesta semana de Halloween que publicar um post sobre a tão falada terra norte-americana das bruxas, situada na costa de Massachusetts. Por sinal, o dia 31 de outubro é a ocasião em que Salem se enche de pessoas fantasiadas a caráter para curtir a data, carregando os apetrechos vendidos nas inúmeras lojas especializadas. Em termos turísticos, a cidade extrai o quanto pode da sua fama sobrenatural de outras eras...

             Os julgamentos infames voltaram a ganhar notoriedade da década de 50 para cá graças à peça The Crucible ("As bruxas de Salém"), do dramaturgo Arthur Miller, encenada pela primeira vez em 1953. Uma das obras mais celebradas do autor, a peça relata, com alguma liberdade criativa, a sucessão de acontecimentos que levaram à morte de vinte pessoas, traçando um paralelo sutil com a perseguição movida pelos macartistas na época da sua estreia. Eu tinha estudado a peça quando cursei Teatro Americano há vinte anos e como ainda possuía o material guardado, a reli agora sob uma nova perspectiva. As cenas ganham contornos ainda mais fortes quando acabamos de conhecer o cenário em que aconteceram.

A decoração do calçadão, na Essex Street, também alude às bruxas


Um breve resumo do que ocorreu em Salem em 1692:

           Tudo começou em Salem Village - hoje a cidade de Danvers, ao norte de Salem. Duas meninas em torno de dez anos de idade, Betty Parris e Abigail Williams, filha e sobrinha do pároco local, passaram a apresentar sinais estranhos, como desmaios, delírios e tremores. Abigail admitiu que a escrava caribenha do pároco, Tituba,  havia feito um ritual vodu com a presença delas. Outras meninas da comunidade passaram a sofrer também dos sintomas, numa espécie de choque histérico coletivo, e acusaram duas aldeãs de enviarem espíritos para atacá-las - evidências espectrais eram levadas em conta na época. O surto de acusações se multiplicou e mais de cem pessoas foram denunciadas e presas por bruxaria; aparentemente, as pessoas passaram simplesmente a apontar seus desafetos. Instalou-se em Salem um tribunal, que condenou à morte aqueles que se recusaram a admitir serem bruxos, após julgamentos sem direito a advogado . No total, foram enforcados quatorze mulheres e cinco homens inocentes; outro faleceu sob o peso de pedras sobre o peito, tortura administrada para que confirmasse ou negasse a acusação, sendo a única morte do gênero na existência dos Estados Unidos. O morticínio só foi sustado quando a esposa de um figurão foi mencionada. A prisão em massa causou efeitos profundos na economia local - inúmeros terrenos deixaram de ser cultivados pela falta do dono, causando colapso na agricultura, e os ressentimentos óbvios surgidos perduraram por gerações entre as famílias. Quanto a Tituba, ela escapou da morte, pois cedeu à pressão e confessou professar feitiços, ficando presa por um ano.

Witch House - fonte: creative commons, Salem Puritan, CC-BY-SA 4.0

              Como a maioria das vítimas era de Salem Village, hoje em Salem há praticamente só uma casa aberta a visitação diretamente ligada aos acontecimentos. Apesar do nome Witch House, não pertencia a nenhum condenado por bruxaria, e sim a um dos vários juízes que participaram do julgamento, Jonathan Corwin. Há controvérsias se a casa sediou algum interrogatório.

Barco que faz a ligação Boston - Salem, ancorado no Long Wharf

Como chegar a Salem: 

             Situada 40 quilômetros a nordeste de Boston, Salem é uma excelente opção de bate-volta a partir da capital do estado. Pode-se chegar a Salem por transporte coletivo marítimo ou ferroviário. Fui de barco e voltei de trem. A viagem pelo mar, bem mais pitoresca, é mais cara e demorada, 25 dólares em 55 minutos. Já o trem, da rede MTBA pela North Station em Boston, fez o percurso em somente 32 minutos, por módicos 7,50 dólares. Não havia guichê na estação ferroviária de Salem para aquisição da passagem, então a comprei do inspetor dentro do próprio vagão.

A costa de Massachusetts a partir do ferry rumo a Salem

             Eu tinha reservado meu último dia inteiro em Boston para conhecer Salem, mas a previsão do tempo indicava um temporal forte, que realmente ocorreu. A solução foi ir a Salem no próprio dia em que cheguei, o que infelizmente me deixou com menos horas do que gostaria para percorrer suas ruas. Foi só deixar as malas no hotel, fazer um lanche rápido e partir para o Long Wharf, situado nas cercanias de atrações do quilate do Aquário de Boston e do Quincy Market. O tempo no barco passa bem rápido ao apreciarmos as belas paisagens que vão sendo anunciadas e comentadas, já que a embarcação acompanha a costa de Massachusetts até alcançar Salem. E ainda se pode apreciar a vista dos arranha-céus de Boston quando o ferry (que está mais para aerobarco) se afasta do cais de partida. Gostei bastante do passeio. Mas se você tiver interesse, é bom consultar antes a escala de horários aqui,  pois só há quatro frequências por dia.




As atrações de Salem:

               Todas as atrações históricas de Salem estão interligadas pela Heritage Trail. De forma semelhante à Trilha da Liberdade em Boston, é uma linha vermelha pintada nas calçadas, que por coincidência começava na estação de ferry e terminava na estação ferroviária. Desta forma, bastou eu segui-la para conhecer os pontos turísticos. Todos os folhetos contendo o mapa do centro mostram o trajeto de três quilômetros da trilha. Muitas das atrações do caminho são museus que exploram o acontecido histórico de formas variadas; basta dar uma olhada rápida nos nomes impressos em azul no mapa acima.

The House of the Seven Gables (gables são os triângulos na parede da fachada formados pelo telhado)

          Perto do cais de chegada está localizada a casa mais famosa de Salem, The House of the Seven Gables. À primeira vista o casarão não está conectado aos julgamentos feiticeirais. Na realidade, nele se passa o romance homônimo escrito por Nathaniel Hawthorne, um dos mais afamados romancistas norte-americanos do século XIX. A casa soturna pertencia à prima do escritor e a trama gótica menciona os julgamentos de 160 anos antes, cujos efeitos são sentidos pela família protagonista, havendo também toques sobrenaturais ao longo da narrativa. Afinal, estamos em Salem! A casa, cuja parte mais antiga data de 1668, foi remodelada há décadas para se assemelhar à descrita no livro e abrigar um museu com mobília da época.

              Curioso é saber que Hawthorne era na realidade trineto de John Hathorne, que figura na peça de Arthur Miller como um dos dois juízes principais do julgamento, retratados como vilões vis. Se você notou o "w" a mais no sobrenome, Hawthorne o acrescentou para não ser associado ao antepassado juiz, que jamais se arrependeu publicamente de sua participação nas sentenças absurdas de morte. Salem homenageou seu filho mais conhecido com uma estátua na avenida mais larga do centro, com justiça chamada Hawthorne Boulevard.

A estátua de Nathaniel Hawthorne. No canto da casa à direita, mais uma alusão às bruxas

          Ao desembarcar no cais do ferry já notei uma peculiaridade de Salem que me deixou espantado. Apesar de no passado ter sido um dos entrepostos comerciais marítimos mais importantes do país, a cidade é virada de costas para o mar; pelo menos no centro não há uma rua litorânea e as ruas terminam na água, sem saída.

Placa alusiva ao Maritime National Historic Site

            Desta época comercial gloriosa sobrou pouca coisa. Não tive tempo de visitar um museu excelente dedicado ao tema, o Peabody Essex, que conta com uma ala de artefatos chineses trazidos pelos marinheiros. Das dezenas de píeres de outrora, agora só restam três, na área histórica conhecida como Maritime National Historic Site. O píer mais longo tem 800 metros de comprimento mar adentro e fica difícil imaginar que era coberto de armazéns que abrigavam produtos como especiarias, seda e chá, vindos do Oriente. Na sua ponta está um pequeno farol, de apenas oito metros de altura, que opera há 147 anos, hoje alimentado por energia solar.

Um dos três píeres de Salem, com um armazém solitário que escapou da demolição

           Contrastando com a aridez arquitetônica dos píeres, à sua frente está a Custom House, a antiga alfândega onde eram pagas as taxas comerciais. Foi construída no estilo típico da Nova Inglaterra, com o pórtico apoiado em colunas clássicas na parte frontal. No seu telhado se encontra uma águia dourada. No interior do prédio se encontra em exposição uma outra, idêntica. Ou quase... Esta segunda águia é a original, datada da terceira década do século XIX, época da construção do prédio, e feita de madeira. Já a substituta no telhado, em fiberglass, foi inaugurada há quatorze anos.

              A Custom House é cenário do primeiro e mais conhecido livro de Nathaniel Hawthorne, The Scarlet Letter ("A Letra Escarlate"), leitura praticamente obrigatória na high school norte-americana. O livro é um pouco autobiográfico, já que Hawthorne trabalhou lá como inspetor, e foi escrito logo em seguida à sua demissão do cargo devido à ascensão da oposição ao governo do país.

A Custom House encimada pela águia dourada

             Com o crescente fluxo de turistas nas últimas décadas do século XX, a cidade se ressentia de não possuir um monumento oficial às vítimas dos Julgamentos de Bruxaria. Aproveitando a ocasião do seu tricentenário, foi inaugurado em 1992 o Witch Trials Memorial. Situado ao lado do cemitério onde estão enterrados o juízes Corwin e Hathorne, à primeira vista parece um terreno gramado sem muita graça, mas um olhar cuidadoso revela que tudo ali tem uma explicação. O muro baixo de pedras nuas que envolve o terreno contém bancos de granito, cada um com o nome gravado de uma vítima, com a data e método de sua morte; as poucas árvores no gramado são alfarrobeiras, que se acredita ser a espécie onde ocorreram os enforcamentos no alto de uma colina de Salem; e na parte do chão do terreno que dá para a rua estão entalhadas as últimas palavras de cada um dos condenados assassinados, a maioria clamando inocência. Uma delas no entanto resume a lógica perversa dos julgamentos: "Se eu tivesse confessado, teria salvo minha vida". 

Witch Trials Memorial

          E para coroar a visita, a bruxa mais famosa dos Estados Unidos - pelo menos para minha geração - também se encontra homenageada em Salem. Na esquina das ruas Essex e Washington está a estátua de Samantha Stephens, a protagonista do seriado Bewitched ("A Feiticeira" no Brasil), vivida pela atriz Elizabeth Montgomery nas décadas de 60 e 70. Lá está ela eternizada sobre uma vassoura, como na célebre abertura em desenho animado do seriado, que teve alguns episódios filmados em Salem. Só faltou a clássica mexidinha do nariz para conjurar algum feitiço... Pena que a atriz não pôde apreciar o ótimo trabalho do escultor, pois tinha falecido há sete anos quando inauguraram a estátua.

"A Feiticeira" 

  ⏬ Não deixe de conferir os outros posts publicados no blog sobre a região da Nova Inglaterra:

 Postado por  Marcelo Schor  em 27.10.2018 

2 comentários:

  1. Oi, Marcelo. Tudo bem? :)

    Seu post foi selecionado para o #linkódromo, do Viaje na Viagem.
    Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com

    Até mais,
    Bóia – Natalie

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