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A bandeira da Albânia tremula na muralha da Fortaleza de Rozafa sobre o vale de Shkodër |
Saindo de
Budva pela manhã em um dia onde a chuva ameaçava cair a cada instante, nosso destino inicial era a cidade albanesa de Shkodër, onde faríamos uma visita a uma das fortalezas mais bem posicionadas que já visitei. Após passar por uma região mais rústica de Montenegro, alcançamos a fronteira e logo paramos para pegar nosso guia local. Ele nos acompanhou durante os dois dias e meio de estadia na
Albânia, contando muitos aspectos interessantes sobre este país que até então era praticamente desconhecido para mim.
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O belo vale do rio Buna, visto da Fortaleza de Rozafa em Shkodër |
Parte deste mistério se deve à ainda incipiente presença de turistas no país e também ao fato de a Albânia ter passado décadas completamente isolada do resto do mundo durante o governo comunista de Enver Hoxha, que durou 46 anos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Com tão pouco tempo em terras albanesas, acabei não conhecendo as belas cidades de Berat e Gjirokastër, patrimônios da Humanidade, nem as praias das costas dos mares Adriático e Jônico. Mesmo sem ter passado por algum lugar de cair o queixo, as paisagens das estradas do país bem montanhoso (a origem da eletricidade é quase toda hidroelétrica) eram muito bonitas, e me encantei pela população, simpática e prestativa. Seguem alguns fatos e considerações que tornam a Albânia tão peculiar e diferente do resto do continente, além de tão fascinante para se conhecer:
- Hoje uma república parlamentarista, a Albânia ainda é um dos países mais pobres na Europa, mas com crescimento da economia elevado nos últimos anos. A maioria da população ainda está empregada na agricultura, onde a ilegal cannabis ocupa lugar de destaque. Não vi contrastes gritantes como ocorre no Brasil, e 99% da população é alfabetizada. Uma surpresa foi saber que o país conta com grandes reservas de petróleo.
- Seu idioma, o albanês, faz parte de um ramo independente do indo-europeu, o que significa que não se parece com qualquer outra língua europeia. De vez em quando aparecem algumas palavras derivadas do grego ou do italiano que conseguimos entender. Para complicar, algumas letras têm som diverso do habitual, como o q, que soa como uma espécie de "tch". De qualquer modo, me espantei com a grande quantidade de pessoas que falavam inglês, especialmente na capital Tirana.
- Seu nome em albanês, Shqipëria, significa Terra da Águia. A ave imponente, a águia real, é o símbolo nacional e está presente em sua bandeira, com duas cabeças.
- Sua moeda é o lek, cuja cotação em agosto era de 126 leke para um euro. Aliás, o custo das coisas na Albânia é geralmente muito barato, incluindo as refeições, bem mais em conta que na Croácia, por exemplo. Realmente de impressionar; gastei pouquíssimo.
- A Albânia é um dos raros países de maioria muçulmana na Europa. No entanto, há número considerável de ateus ou sem religião definida, provável reflexo dos anos de comunismo, quando a religião foi banida. Os albaneses são conhecidos pela tolerância religiosa, que salta aos olhos quando se observa templos católicos, ortodoxos e muçulmanos praticamente um ao lado do outro, como presenciei já no centro de Shkodër. Curioso foi notar que, em contraste com o número elevado de mesquitas, não vi mulheres usando véu ou indumentária religiosa, denotando uma atitude mais relaxada do povo com relação à religião, ao contrário do próximo país que visitaria, a Macedônia.
- Outra característica marcante é o código de honra, o besa, cultivado há muitas gerações, moldado por fatores como solidariedade e hospitalidade. Baseadas neste código estão atitudes como o ocorrido na Segunda Guerra Mundial, quando os albaneses protegeram cada judeu que vivia no país da perseguição fascista e nazista, os abrigando junto à sua família, mesmo sob risco grande de represália - com efeito, ao fim da guerra a população judaica tinha saltado de 200 para 2.000 pessoas, com a proteção estendida a refugiados vindos dos países vizinhos.
- E é sempre impressionante encontrar um país europeu que não tenha uma lanchonete sequer do Mc Donald's (mas havia KFC...). Falando em comida, a culinária albanesa, baseada na dieta mediterrânea, é saudável e saborosa, sendo responsável direta pelo baixo índice de doenças cardiovasculares na população.
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Um bunker albanês |
Logo após a passagem pela fronteira, já vislumbramos uma das marcas registradas da Albânia: um
bunker. Durante seu governo Hoxha espalhou mais de 700.000 destas casamatas de concreto em forma de iglu por todo o país, o que dá uma média de um bunker para cada quatro albaneses. O objetivo era proteger a Albânia de exércitos invasores e o formato inusitado servia para ricochetear balas. De tamanhos variados, os onipresentes bunkers foram construídos principalmente nas décadas de 60 a 80, após a Albânia ter deixado o Pacto de Varsóvia, rompendo com a União Soviética. A Iugoslávia também era considerada inimiga e quando chegamos perto da fronteira com a Macedônia após deixarmos Tirana, era espantosa a quantidade de bunkers no campo. O seu propósito militar original nunca foi usado, já que não houve invasão do país desde então. Hoje muito poucos têm algum uso, normalmente como abrigos de animais. Como a Albânia não é um país rico, só fico pensando em como toda a verba gasta na sua construção poderia ter sido melhor empregada.
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O guia albanês (à direita) acompanha meus dois colegas de excursão latino-americanos no caminho de acesso a Rozafa. |
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A entrada da Fortaleza de Rozafa |
A cidade de
Shkodër fica situada perto do lago de mesmo nome, o maior do sul da Europa, que serve também de fronteira entre Montenegro e Albânia. Sua maior atração é o
Castelo de Rozafa, uma fortaleza encarapitada no alto de um morro com vistas soberbas para a cidade, o lago e os rios. Para lá nos dirigimos ao chegar na cidade e a van estacionou bem perto da entrada, o que não seria possível com um ônibus.
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Fortaleza de Rozafa |
Com localização estratégica garantindo domínio espetacular sobre o vale, o Castelo de Rozafa está localizado a 130 m de altitude e remonta aos tempos dos ilírios, no século III a.C. Ainda há na entrada da fortaleza trechos das muralhas erguidas nessa época, mas a maior parte do que vê é mais recente, dos domínios veneziano e otomano. Por sinal, o castelo foi o último reduto veneziano na Albânia a cair em mãos turcas em 1479 (enquanto isso, o domínio veneziano se estenderia em Montenegro até o século XVIII, estabelecendo um dos grandes diferenciais entre as culturas dos dois países vizinhos). Rozafa adquiriu a partir daí importância ainda maior: além de quartel militar, acabou se tornando com o passar do tempo o centro administrativo da região e a residência do vizir. A fortaleza ainda cumpria seu papel militar em 1912, quando Montenegro declarou guerra ao Império Otomano, que acabou resultando na independência da Albânia. Para Shkodër o efeito foi outro, pois passou a pertencer a Montenegro até voltar à Albânia em 1920.
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Muralha da Fortaleza de Rozafa |
Há uma lenda um tanto macabra envolvendo a origem da fortaleza. Três irmãos tinham a tarefa de erguer o castelo, mas o trabalho não andava, os muros se desmanchavam dia a dia. Um profeta ancião então predisse que a construção só progrediria se a esposa de um dos irmãos que levasse a comida a eles no dia seguinte fosse emparedada viva. Os irmãos acordaram entre si nada contar aos familiares, mas os dois mais velhos avisaram suas mulheres, que deram uma desculpa qualquer à matriarca do clã para não levar a refeição. Coube então a tarefa à esposa do caçula honesto. Quando chegou ao topo do morro e soube do seu triste destino, Rozafa não só concordou com sua sina pelo bem da família como solicitou que lhe deixassem livres o olho, braço, pé e seio direitos, para que pudesse acariciar e amamentar o filho pequeno. Assim foi feito, e a edificação finalmente se ergueu.
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Aspectos das ruínas da Igreja de Santo Estevão, depois Mesquita do Sultão Mehmet |
Se hoje as muralhas estão bem preservadas, o mesmo não se pode dizer do interior do castelo fortificado. A antiga Igreja de Santo Estevão de Shkodër, depois convertida em mesquita, está em ruínas. Já a sede do comando militar está melhor conservada e hoje abriga um museu. Há entradas de túneis no pátio que serviam como passagem secreta, além de um poço.
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Vista a partir de Rozafa do bairro cigano de Shkodër, com o Lago Shkodër ao fundo |
Em dias claros a vista ultrapassa o Lago Shkodër e alcança os Alpes Albaneses, a cordilheira ao norte onde ficam alguns dos picos mais altos do país, com até 2.700 m de altitude. Curiosamente, o nome da cordilheira tanto em albanês quanto em montenegrino significa "montanha amaldiçoada".
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Shkodër vista do Castelo de Rozafa |
Partimos então para o centro de Shkodër (o ë tem o som da letra a na palavra inglesa
ago). Com 120.000 habitantes e considerada a capital econômica e cultural do norte da Albânia, seu centro não tem uma atração que roube a atenção. No entanto representa uma síntese do que encontraríamos no país, o velho e tradicional mesclando com o moderno, o que não deixa de ser um tanto desconcertante para quem visita um país forçado a se repensar completamente há vinte anos.
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Praça Independência, a principal de Shkodër, com o Teatro Migjeni |
Bem perto da sua praça principal encontramos uma estátua de
Madre Teresa de Calcutá. Apesar de nascida na vizinha Macedônia (visitei seu museu três dias depois em Skopje), a religiosa tinha pais albaneses, e é bastante reverenciada não só no país de origem de sua família como em todos os Bálcãs. Madre Teresa é inclusive o nome do aeroporto de Tirana, pelo qual passaríamos na porta no final do dia, na chegada à capital. O dia de Madre Teresa é feriado no país e a representativa comunidade católica de Shkodër comemora a data enchendo de flores o pedestal da estátua - se bem que em pleno junho havia também muitas flores aos seus pés. O ano de 2018 marcou a troca da data do feriado. Até 2017, era observado em 19 de outubro, dia de sua beatificação; a partir deste ano o feriado passou a acontecer em 5 de setembro, data de sua morte em 1997 e também de sua canonização em 2016.
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Estátua de Madre Teresa de Calcutá no centro de Shkodër |
Os templos das três religiões com maior número de fiéis na Albânia estão situados a poucos passos um do outro, formando um triângulo de poucas quadras. O mais grandioso é a
Mesquita de Ebu Bekër, que ocupa todo um quarteirão.
Também chamada pelos locais de Grande Mesquita, com seu teto de cobre reluzente não parece muito antiga, e realmente é nova, por uma razão triste. A partir de 1967, quando a Albânia foi oficialmente transformada num país ateu, o governo de Hoxha comandou a destruição de templos religiosos por todo o país. Sendo um importante centro religioso e conservador, Shkodër foi particularmente afetada - suas 36 mesquitas foram destruídas, só restando uma perto de Rozafa, de valor histórico. A mesquita de Ebu Bekër foi reerguida em 1995, exatamente igual à sua antecessora. Encontramos número considerável de fiéis orando na mesquita, em pleno mês de Ramadã.
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Mesquita de Ebu Bekër, com a Igreja Franciscana ao fundo à esquerda |
O segundo templo, a
Catedral da Natividade, teve sina semelhante na década de 60, porém hoje se destaca pela bela fachada no estilo ortodoxo tradicional dos Bálcãs. Quase ao lado da mesquita está a Igreja Franciscana, mas o templo católico mais importante da cidade é a
Catedral de Santo Estevão, construída no século XIX em substituição à igreja homônima do castelo. Esta catedral teve um destino menos trágico há cinquenta anos - foi transformada num ginásio de esportes. Voltou à atividade original logo após a queda do governo comunista, com uma missa onde a própria Madre Teresa estava presente.
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A ortodoxa Catedral da Natividade |
Chegamos então ao calçadão de Shkodër, a Rruga (rua)
Idromeno, no coração do bairro antigo, onde aproveitei a presença de uma casa de câmbio para trocar minhas kunas croatas remanescentes por leke. Nesta hora o sol finalmente deu as caras, e se manteria firme no restante da nossa estadia na Albânia. Em seguida, almoçamos em um dos vários restaurantes situados nos casarões restaurados do calçadão, antes de partir para a capital Tirana. Não foi uma refeição memorável, tanto que nem guardei o nome do restaurante.
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Rua Idromeno |
No
próximo post a capital Tirana, que nos aguardava com várias surpresas.
Postado por Marcelo Schor em 09.12.2018
Amei! Nunca havia lido algo tão...não sei classificar, não tenho conhecimento para tanto. Mas te digo uma coisa,me bateu uma inveja. Terei que reencarnar algumas vezes para viagens tão maravilhosas assim.
ResponderExcluirDeus os abençoe.
Obrigado pelo elogio. Que bom que o post deixou estas impressões positivas.
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