Eu fazia uma ideia completamente equivocada de
Tirana. Baseado em estereótipos, a imaginava suja, esburacada, desorganizada e caótica. Encontrei o oposto, uma cidade limpa, agradável, segura e de ruas amplas, pelo menos no centro, por onde caminhei. A capital da Albânia transborda história recente em seus monumentos. É bem verdade que, tendo chegado numa tarde de sábado e saído na manhã de segunda-feira, Tirana estava mais tranquila que o habitual. Alguns aspectos complementaram a surpresa, como o elevado número de cafés pelas ruas, com as pessoas papeando animadamente. No entanto, várias placas e monumentos pichados nos faziam lembrar que nem tudo aparenta perfeição.
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A águia bicéfala, símbolo da Albânia, forma o logotipo do Hotel Rogner |
A organizadora da excursão caprichou, nos hospedamos por duas noites no
Hotel Rogner, um cinco estrelas com localização privilegiada, bem na avenida principal de Tirana, o Boulevard
Dëshmorët e Kombit (que traduzido dá o pomposo nome "Mártires da Nação"). Como na década de 90 conseguiram construir um hotel em meio aos principais prédios públicos do país espalhados pela avenida, é um mistério. O hotel fica ao lado de um dos bairros mais nobres da capital,
Blloku, que no passado era reduto exclusivo dos dirigentes do governo comunista, com moradia vetada ao resto da população; é inevitável que ao se passear pelas ruas do bairro acompanhado de um guia, ele não aponte a casa onde morou o ditador Enver Hoxha, e que até decepciona por não ser nenhuma mansão. Hoje Blloku é um bairro revitalizado e rejuvenescido, repleto de butiques e cafés.
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Mapa do centro de Tirana com os lugares mencionados no post |
Atualmente com 900.000 habitantes, Tirana não é tão antiga quanto
Shkodër ou
Budva, tendo sido fundada no século XVII, quando a Albânia já era parte do Império Otomano. Era uma vila sem qualquer importância até ser escolhida como capital do país em 1920. Ainda na década de 20, quando era um reinado, a Albânia caiu sob a influência italiana cada vez maior até que foi simplesmente anexada pela Itália no início de 1939. Foram arquitetos italianos na época de Mussolini que reprojetaram toda a região do Boulevard Dëshmorët, dotando Tirana de ruas largas e de monumentais prédios governamentais, arquitetura típica do fascismo. Quando o país se tornou comunista após a Segunda Guerra Mundial, foi a vez de prédios sisudos típicos da Cortina de Ferro povoarem a parte norte do centro. Aliás, há alguns anos o governo teve a ideia de pintar prédios residenciais com cores vivas distintas, para disfarçar a monotonia das construções. De vez em quando trombamos com algum destes edifícios nas caminhadas. Pena que tenha sobrado tão pouco do período otomano, seja por contribuição dos terremotos frequentes que assolam os Bálcãs, seja derrubados pelo governo comunista. De qualquer forma, esta mistura de estilos arquitetônicos distintos torna Tirana uma cidade sui generis.
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A sede da Universidade de Tirana na Praça Madre Teresa |
Na extremidade sul do Boulevard Dëshmorët está a
Praça Madre Teresa, dominada por um dos edifícios mais representativos do período de arquitetura italiana, que sedia a
Universidade de Tirana e a
Universidade Politécnica. Certamente a praça não levava o nome da religiosa quando foi inaugurada há 77 anos, homenageando então Vittorio Emanuele III, o rei italiano da época. Procurei em vão uma menção à religiosa de origem albanesa. Segundo a wikipedia, a praça chegou a ter uma estátua de Madre Teresa, removida quando Tirana recebeu a visita do Papa Francisco em sua primeira viagem oficial em território europeu, em 2014. No local o pontífice celebrou uma missa, atendida por dezenas de milhares de pessoas.
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O Palácio Presidencial |
Seguindo no rumo norte pelo Boulevard, os marcos governamentais vão se sucedendo. No quarteirão seguinte está o
Palácio Presidencial, construído pelos italianos em fins da década de 30 como Palácio Real, onde mora o Presidente da República. Em frente ao nosso hotel, uma praça abriga um monumento que faz refletir, o
Checkpoint, que reúne três lembranças amargas do período comunista da Albânia e da Europa Oriental: um dos bunkers que pululam por todo o país (veja
aqui o último post, onde falo sobre eles), um pedaço do
Muro de Berlim retirado da Potsdamer Platz e suportes da mina de cobre de Spaç, um campo de trabalhos forçados para onde eram enviados inimigos do governo albanês. A localização do monumento foi escolhida a dedo, pois ali se situa o prédio do antigo
Comitê Central do Partido, onde Hoxha e outros dirigentes tinham escritório.
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Checkpoint: o bunker e atrás, o bloco do Muro de Berlim. Ao fundo, o Comitê Central. |
Andando um pouco mais pelo Boulevard, a memória de Hoxha volta à tona, desta vez numa grande estrutura de beleza duvidosa: a
Pirâmide. Qualquer correlação com os todo-poderosos faraós egípcios não deve ser coincidência, pois foi planejada por sua filha arquiteta para ser seu mausoléu, e consumiu uma verdadeira fortuna durante a construção. A Pirâmide foi inaugurada em 1988 três anos após o falecimento do ditador, com um museu em sua homenagem. Com a queda do regime em 1991, se transformou num centro de convenções, também desativado posteriormente. Desde então abandonada, há discussões eternas se deve ser ou não ser demolida, mas poucos meses atrás surgiu um projeto para revitalizá-la, como centro de educação tecnológica para jovens. Por sinal, os adolescentes descobriram uma função muito melhor para as paredes inclinadas de concreto e mármore: as usam como pista de skate.
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A Pirâmide de Tirana |
Bem na frente da Pirâmide, um sino se destaca dependurado numa pequena ponte de acesso. Trata-se do
Sino da Paz, forjado com cápsulas de balas coletadas por crianças do norte da Albânia, disparadas durante o conflito que tomou conta do país em 1997. Na ocasião houve uma gravíssima crise econômica devido à falência de esquemas de pirâmide (financeira, não a de Hoxha) em que muitos albaneses entraram; a revolta só terminou com a chegada de forças internacionais e a realização de novas eleições. Ainda perto do sino está o busto do Papa Francisco, inaugurado há dois anos na calçada do Boulevard.
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O Sino da Paz |
Neste ponto, o Boulevard atravessa o rio Lanë e alcançamos o
Parque da Juventude. Inaugurado nos anos 50, após a queda do comunismo o parque foi tomado por uma favela, depois removida. Reformado, o parque atrai novamente famílias que vêm passear e apreciar sua fonte luminosa. Adjacente ao parque uma construção modernosa abriga o complexo
Taiwan (ou Tajvani em albanês), com lojas e um restaurante italiano onde almocei. O nome do país chinês causa espanto e sua origem é fonte de versões variadas. A mais original afirma que o apelido deriva do contraste entre Blokku, o bairro dos dirigentes ali ao lado, e o parque, reduto à época de jovens tocando guitarra, tal qual a posição de independência e desafio da ilha de Taiwan em relação à muito maior China. Comida boa, mas um pouco cara para os padrões albaneses de custo baixo de refeições, com a vantagem de se poder apreciar a vista para o parque a partir da varanda ou do interior envidraçado.
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Rua Murat Toptani |
Chegamos então à região mais antiga de Tirana, onde sobrevivem algumas casas do período otomano. Do boulevard sai o calçadão da
Rua Murat Toptani, bem arborizado e com alguns restaurantes. A rua termina na Avenida George W. Bush (sim, há uma via homenageando o ex-presidente norte-americano), que por sua vez vai dar na
Ponte dos Curtidores, uma estreita ponte de pedra do século XVIII que fazia parte da estrada que ligava Tirana ao interior.
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Da direita para a esquerda, Teatro Nacional, Torre do Relógio, Prefeitura e entrada do Museu Bunkart. |
Junto à rua Murat Toptani está uma espécie de centro cívico, onde se destacam o
Teatro Nacional, a Prefeitura e a
Torre do Relógio, inaugurada em 1822 com 35 metros de altura. No meio da rua, um bunker branco bem cuidado na realidade esconde a entrada do novo
Museu Bunkart, inaugurado há dois anos. O museu ocupa um bunker secreto subterrâneo com 1.000 m² de área e paredes com até 2,5 metros de espessura, construído na década de 80 para abrigar os dirigentes albaneses do vizinho Ministério de Assuntos Internos em caso de hecatombe nuclear. Se você tem interesse em saber como foram as perseguições movidas pelo regime comunista em seus 46 anos de governo e seus efeitos trágicos sobre a população albanesa, este é o museu a visitar.
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Mesquita Ethem Bey |
A
Mesquita Ethem Bey, em frente à Torre de Relógio, foi construída no final do século XVIII. Considerada patrimônio cultural, escapou da sanha destruidora de templos que ocorreu no final da década de 60, quando a Albânia foi declarada oficialmente ateia pelo governo comunista, sendo apenas fechada. Em janeiro de 1991, já no ocaso do regime, foi reaberta sem permissão das autoridades. Dez mil pessoas carregando bandeiras atenderam à convocação sem que a polícia interviesse, no que é considerado o marco inicial no restabelecimento da liberdade de culto no país. Ethem Bey é conhecida por seus afrescos incomuns de árvores e cascatas, mas não pudemos apreciá-los, pois a mesquita estava em obras, como verificamos pelos tapumes que a cercavam.
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A estátua de Skanderbeg na praça que leva seu nome. Ao fundo, os Ministérios da Agricultura e das Finanças. |
A mesquita também é voltada para a
Praça Skanderbeg, a enorme praça principal de Tirana. No canto onde termina o Boulevard está a imponente estátua equestre do próprio Skanderbeg, apelido ("líder Alexandre", do turco) pelo qual ficou conhecido o herói nacional da Albânia. Nobre educado no sultanato otomano, acabou conduzindo uma revolta bem-sucedida contra as forças de ocupação turcas por 25 anos em meados do século XV. Seu estandarte de luta contendo a águia bicéfala depois viria a se tornar a bandeira da Albânia. Onze anos após sua morte o país foi totalmente reconquistado pelos otomanos com a queda do Castelo de Rozafa, se tornando independente somente 423 anos depois. Curioso foi saber que o local antes era ocupado por uma estátua de Stalin, substituída em 1968 assim que a Albânia rompeu relações com a União Soviética.
A praça vedada ao tráfego sofreu uma reforma no ano passado e agora seu piso ligeiramente inclinado está coberto por placas sobre um estacionamento subterrâneo. A maioria dos prédios da época otomana que a cercavam, incluindo o Bazar e a Catedral Ortodoxa, foram derrubados pelo governo comunista e substituídos por prédios funcionais como os que abrigam a Ópera e o Museu Histórico.
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O mosaico na fachada do Museu Histórico Nacional |
Na fachada do
Museu Histórico Nacional, de frente para a Praça Skanderbeg, está um dos ícones do país, o mosaico de cerâmica simplesmente chamado "Albânia". O mosaico celebra a eterna luta pela libertação do país, abrangendo desde os ilírios, à esquerda, até os partisans vitoriosos na Segunda Guerra Mundial, à direita. Não poderia faltar a declaração de independência de 1912, nas mãos do homem barbado de terno preto.
O museu em si é considerado o mais importante do país, o que já se torna um motivo para conhecê-lo. Seus vários pavilhões abrangem toda a história da Albânia desde os tempos ilírios até a atualidade, com objetos pertinentes como uma réplica da espada de Skanderbeg ou esculturas gregas da Antiguidade. Descobri depois que há inclusive um pavilhão dedicado a Madre Teresa, que acabei não visitando; não sei se estava fechado ou se simplesmente passei reto sem notá-lo. O preço seguiu os padrões albaneses, 200 leke, menos de dois euros. Para quem se dispuser a visitá-lo, dois avisos: parte da exposição não está traduzida para o inglês, e não há ar condicionado, um problema e tanto nos dias de calor do verão.
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A nova Catedral Ortodoxa da Ressurreição, inaugurada há seis anos, e seu campanário em formato de velas com 16 sinos. |
Uma característica de Tirana que me chamou a atenção foi a engenhosidade de algumas soluções urbanas que não vi em outro lugar. Dois exemplos são os sinais de trânsito com leds descendo ao chão acompanhando as cores verde ou vermelha, tornando a sinalização mais visível à noite, e placas antimijões, informando que os infratores estão sendo filmados e terão suas imagens divulgadas no YouTube. Genial.
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Soluções urbanas interessantes no Boulevard Dëshmorët |
A cidade me deixou saudades. Um bom motivo para retornar e aí então poder conhecer a agora afamada Riviera Albanesa.
⏩➧ Este é o décimo primeiro post com os relatos da segunda viagem aos Bálcãs. Para visualizar os demais, acesse Atravessando os Bálcãs: Montenegro, Albânia, Macedônia e Sérvia.
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