A adorável cidade macedônia de
Ohrid foi sem sombra de dúvida o ponto alto do roteiro pelos quatro países dos Bálcãs que conheci pela primeira vez. O que dizer de uma cidade esparramada por uma encosta à beira de um lago imenso e límpido, com uma muralha e fortaleza medieval no topo da colina? Tendo sido capital do Império Búlgaro mil anos atrás e sede eclesiástica, Ohrid conta com um rico acervo cultural em belas igrejas ortodoxas. Como não podia deixar de ser, a região é há 39 anos um Patrimônio da Humanidade pela Unesco, o único no país até o momento.
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Vista parcial de Ohrid |
O
Lago Ohrid por si só já é uma atração. Não se trata de um lago qualquer. Formando parte da fronteira entre Albânia e Macedônia a quase 700 metros de altitude, chega a 288 metros de profundidade, o mais profundo dos Bálcãs. Foi formado no período terciário, há mais de um milhão de anos, sendo portanto também o lago mais antigo da Europa. Há até um lago (como são chamados os corpos líquidos) na superfície do maior satélite do planeta Saturno, Titã, batizado em sua homenagem. Neste quesito Ohrid tem companhia brasileira, a fluminense Lagoa Feia também deu seu nome a outro lago de Titã.
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O cais de Ohrid e a estátua "Apanhador de uma Cruz". O Park Hotel está encoberto pelo toldo do barco, na margem oposta. |
Após deixarmos
Tirana cedo pela manhã, paramos em
Elbasan, uma cidade a 41 quilômetros da capital albanesa, para conhecer sua muralha romana erguida no século IV. Elbasan era parada importante na Via Egnácia, estrada estratégica que ligava Roma a Bizâncio, a atual
Istambul. Em seguida, atravessamos a fronteira e paramos brevemente em
Struga, após muitos minutos perdidos pelo guia catando uma vaga para a van estacionar; simplesmente passamos três vezes por uma mesma esquina. Struga não disse a que veio, achei uma cidade feia, suja e sem atrativos, apesar de também estar à beira do lago Ohrid. Desta forma a impressão inicial sobre a Macedônia não foi das melhores, mas iria mudar radicalmente nas 36 horas seguintes.
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A "praia" do Park Hotel. Ao fundo, Ohrid. |
Chegamos em Ohrid e deixamos as malas no
Park Hotel, situado à beira do lago de frente para a cidade, a dois quilômetros de distância do centro e um tanto isolado. Este foi um dos hotéis que diferiam da lista do roteiro oficial. Segundo nosso guia Juan Pedro, o hotel original, o Metropol, além de se situar bem mais longe, estava "decadente" - palavra que me provoca calafrios pela conotação negativa. O Hotel Park, com quarto razoável, possui um balneário particular, e fazendo 29 °C naquele tarde, havia vários hóspedes se banhando. Não tivemos tempo de nos juntarmos a eles, logo partimos rumo à cidade para aproveitar o resto da tarde. O hotel está situado em local nobre: ao seu lado está o complexo antes pertencente ao Marechal Tito, o ex-ditador iugoslavo, onde hoje são as residências de verão do presidente e do primeiro-ministro macedônios.
Ohrid (lê-se
órr-rit) é a principal localidade turística da Macedônia, e sua origem remonta a mais de dois mil anos atrás. A lenda conta que foi fundada pelo mesmo Cadmo da montenegrina
Budva - ô cara prolífico! Passou pelos domínios romano, búlgaro e bizantino até ser conquistada pelos otomanos no século XV. Até então o núcleo urbano se limitava às partes elevadas (seu nome bem apropriado significa "sobre a colina" em eslavo antigo), quando então se espraiou pelas terras mais baixas. Por esta razão não existem mesquitas na colina. Aliás, esta foi uma grande diferença em relação às cidades albanesas que tinha acabado de conhecer - lá igrejas e mesquitas se encontram lado a lado.
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A estátua de São Clemente, padroeiro e primeiro arcebispo da cidade, na praça em frente ao cais |
Como chegamos a Ohrid no início da tarde e saímos após o almoço no dia seguinte, a visita à cidade acabou dividida em duas partes. Ao final do primeiro dia, a sensação foi de ter conhecido um lugar bonito, mas não excepcional. Porém quando partimos no dia seguinte à tarde para Skopje após o tour matutino, só podia traduzir meu sentimento de deslumbramento com uma única interjeição - "uau!".
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Cidade alta e a Fortaleza do Czar Samuel |
O tour a pé guiado pela cidade histórica estava marcado para a manhã seguinte, portanto naquela tarde zanzei pela parte plana, onde estão localizados o cais, o comércio e os restaurantes. Aliás, os restaurantes da orla são bem mais caros, não podia ser diferente num local turístico, mesmo na Macedônia. O calçadão de pedestres
Kliment Ohridski (homenagem ao padroeiro São Clemente) leva ao bairro
Mesokastro, e a uma praça com um plátano de 900 anos de idade, chamado
Cinar, cujo tronco oco é tão largo que dizem ter abrigado uma barbearia em seu interior. Nas cercanias da árvore anciã estão duas mesquitas, nos fazendo relembrar o passado otomano da cidade, onde 18% da população professa a religião muçulmana.
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Igreja de Santa Sofia |
Na manhã seguinte, lá estávamos nós às 9 da manhã na praça rente ao cais para encontrar a guia local. Iríamos subir pelas ladeiras da cidade histórica e conhecer as igrejas ortodoxas com fachadas de tijolo aparente e formas arredondadas que fazem a fama de Ohrid. São tantas igrejas na cidade que os habitantes dizem que houve época em que chegavam a 365, uma para cada dia do ano. Como ainda não estava fazendo tanto calor àquela hora (foi o dia mais quente de todo o roteiro) e aconteceram várias paradas pelo caminho até chegarmos ao topo na fortaleza, o percurso não foi cansativo. Houve um momento-comédia quando a guia macedônia se virou para mim e me perguntou de que país eu era, já que não conseguia identificá-lo pela minha pronúncia do espanhol.
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Maquete da Igreja de Santa Sofia no seu pátio |
A primeira parada foi na igreja de
Santa Sofia, uma das mais antigas de Ohrid, erguida no século XI, quando a cidade já era sede de um arcebispado e capital do Império Búlgaro. O que mais surpreende são os afrescos em seu interior, datando dessa época ou dos séculos subsequentes. Várias das pinturas estão bastante desbotadas devido ao passar do tempo. Na realidade, a igreja foi convertida em mesquita no século XV sob o Império Otomano, e os afrescos sumiram, caiados de branco. O prédio ainda foi utilizado como armazém antes de retornar a ser um templo cristão, há pouco mais de cem anos. No entanto, os afrescos só foram recuperados de algumas décadas para cá, e o trabalho ainda continua. A importância da igreja pode ser mensurada pela nota macedônia de 1.000 denar, cujo verso mostra detalhes do seu interior. A fachada dos fundos é outra surpresa, mais gasta e com estilo completamente diferente da frente.
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Detalhe da fachada dos fundos da Igreja de Santa Sofia |
Prosseguimos subindo até alcançar o
Anfiteatro, a única lembrança arquitetônica dos primórdios da cidade. Construída há mais de 2.100 anos no período de dominação grega, a arquibancada em semicírculo só foi desenterrada na segunda metade do século XX, com os trabalhos sendo concluídos somente após a desintegração iugoslava, na década de 90. No período romano, o palco foi usado em lutas de gladiadores. Convenientemente protegido pelas encostas, o anfiteatro é dotado de acústica ímpar. Atualmente é palco de concertos e outras apresentações durante o
Festival de Verão de Ohrid, que ocorre por quarenta dias a cada julho e agosto. O Festival passado, ocorrido em 2018, se encerrou com uma apresentação da Ilíada de Homero no palco. Por sinal, a Igreja de Santa Sofia também abriga eventos menores do festival em seu interior.
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Anfiteatro de Ohrid |
Junto ao anfiteatro está o
Portão de Cima, uma das duas passagens existentes na muralha que circunda a cidade antiga. Ao seu lado encontramos a Igreja de
Santa Mãe de Deus Perivleptos. Construída em 1295, além da fachada típica dos templos ortodoxos de Ohrid, também possui uma torre de campanário branca, que a torna marcante na paisagem da cidade. Escolhida como catedral da cidade após a transformação de Santa Sofia em mesquita, a igreja abriga afrescos da época da sua construção. Com acervo eclético, como se não fosse suficiente há ainda pergaminhos do século XI e uma exposição com fotos antigas em preto e branco de Ohrid, sem falar da ampla vista da cidade abaixo e do lago obtida do seu pátio.
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A Igreja Perivleptos e seu campanário branco, à esquerda, vista da rua que leva à Igreja de São Clemente |
Eu estava ansioso por conhecer a fortaleza, que imaginava ser o ápice do tour. Estando praticamente no topo de Ohrid, o Portão de Cima seria um ponto natural para se iniciar a caminhada rumo à fortaleza, mas em vez disso a guia local seguiu pela rua que margeava por cima o anfiteatro, iniciando uma descida. Pelo caminho, foram se abrindo vistas parciais da cidade até alcançarmos o sítio arqueológico onde está a
Igreja de São Clemente e Pantaleão.
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Igreja de São Clemente e São Pantaleão, com as ruínas arqueológicas da basílica à sua frente |
Minha primeira impressão foi de espanto pelo suposto trabalho excelente de restauração do templo. A igreja parecia ter sido construída há pouco tempo! Só que tinha sido mesmo, mais precisamente há dezesseis anos. A confusão faz sentido quando se sabe que existiu no local o
Mosteiro de São Clemente, fundado pelo próprio no final do século IX, sobre os escombros de uma basílica antiga. Acredita-se que foi no mosteiro que São Clemente, discípulo de São Cirilo e primeiro arcebispo de Ohrid, começou a divulgar o alfabeto cirílico na então Bulgária. Lá ele foi enterrado. Com a invasão otomana no século seguinte, o mosteiro também foi convertido em mesquita, até que foi destruído. Há anos se iniciaram as escavações para recuperação do que restou do mosteiro e da basílica, que pode ser conferido na frente da igreja atual, reconstruída de acordo com os planos originais. Seguindo a tradição de ensino do mosteiro, uma universidade também está sendo erguida ao lado, sendo obviamente objeto de polêmica pela localização dentro do sítio arqueológico.
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Igreja de São Clemente e Pantaleão vista a partir da fortaleza |
Visitados os mosaicos no chão remanescentes do mosteiro, aí sim partimos para a
Fortaleza do Czar Samuel. No caso, não se trata de nenhum soberano russo, mas de um dos mais conhecidos governantes do Primeiro Império Búlgaro no final do século X, época em que Ohrid estava no apogeu como centro cultural e eclesiástico. Foi Samuel quem transferiu a capital búlgara para Ohrid e construiu a fortaleza imponente no alto do morro para sua defesa e mostra de seu poderio. O czar acabou morrendo de enfarte após uma derrota importante do seu exército para os inimigos bizantinos, e com efeito, pouco tempo depois Bizâncio conquistou a Bulgária há exatos mil anos em 1018, dando fim ao período em que a cidade foi o centro das decisões. E hoje o país bem menor que conhecemos como Bulgária está longe de Ohrid, a uns trezentos quilômetros de distância.
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Trecho da muralha que envolve a parte histórica de Ohrid |
Boa parte da muralha de três quilômetros que descia da fortaleza e envolvia a cidade antiga ainda sobrevive. Os próprios muros que cercam a fortaleza foram restaurados recentemente, mas o interior da construção está totalmente destruído. A vista do alto do complexo de dezoito torres e quatro portões é magnífica para todos os lados . Vale a pena enfrentar a escada estreita de degraus irregulares colada ao muro externo para alcançar a torre ao lado do mastro onde tremula a bandeira ensolarada da Macedônia.
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Fortaleza do Czar Samuel |
Mais uma surpresa nos aguardava ao deixarmos a fortaleza. Ao invés de seguirmos pelos caminhos tradicionais, entramos num bosque e fomos descendo o terreno da encosta sob a multidão de árvores, até alcançarmos a igreja com a localização mais espetacular de Ohrid,
São João (Sveti Jovan Kaneo), considerada o cartão postal da cidade. O templo ortodoxo está situado à beira do precipício junto ao lago e a vista obtida da trilha pela qual vínhamos baixando é algo inacreditável de tão bonita, com a silhueta elegante da igreja debruçada sobre o azul intenso das águas, ainda mais naquele dia de céu claro. Erguida no século XIII sob influência de arquitetura armênia, seu interior contém afrescos medievais no domo.
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Igreja de São João |
Hora de retornar ao centro da cidade pela orla. Passamos pela pequena praia de cascalhos de
Kaneo, já bem cheia graças à temperatura que subia vertiginosamente, e entramos numa passarela de madeira no estilo das existentes nos
Lagos Plitvice, que acompanhava a costa. Seguimos pela passarela colada ao penhasco até alcançarmos novamente o cais central. Após um breve tempo livre, entramos na van para seguir rumo a Skopje.
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Retornando pela passarela ao centro de Ohrid |
Lamentei profundamente não ter passado uma noite a mais nesta cidade cativante. Ohrid tem muito potencial para se tornar um destino na rota turística de brasileiros, como já está começando a acontecer com a Albânia.
No
próximo post, Skopje, a capital da Macedônia, onde a regra foi exagerar na arquitetura. De quebra, algumas curiosidades sobre o país.
⏩➧ Este é o décimo segundo post com os relatos da segunda viagem aos Bálcãs. Para visualizar os demais, acesse Atravessando os Bálcãs: Montenegro, Albânia, Macedônia e Sérvia.
Postado por Marcelo Schor em 03.01.2019
Oi, Marcelo. Tudo bem? :)
ResponderExcluirSeu post foi selecionado para o #linkódromo, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Até mais,
Bóia – Natalie
Natalie,
ExcluirObrigado pela seleção!