Pages

Roteiro pelo centro de Belgrado

A Torre do Relógio na Cidadela de Kalemegdan

            Como já havia comentado, Belgrado entrou de brinde no meu roteiro pelos Bálcãs, já que meu interesse original eram Albânia, Montenegro e Macedônia. Não sabia muito o que esperar e tive uma boa surpresa nas três noites em que passei na capital da Sérvia. Belgrado é uma cidade diversificada, com atrações interessantes, custo barato e vida noturna agitada.

           Com seus 1,8 milhão de habitantes, é muito maior que as demais cidades dos Bálcãs e está estrategicamente localizada na confluência dos rios Danúbio e Sava. O Danúbio dispensa apresentações, enquanto o Sava é considerado o divisor natural entre Europa Central e Bálcãs. Dito isto,  pela aparência Belgrado nos faz remeter muito mais à Europa Central.

O encontro entre o Rio Danúbio e seu afluente Sava (à esquerda), visto de Kalemegdan

           A origem de Belgrado é bem antiga, datando dos tempos romanos. Apesar de ter estado sob domínio turco por três séculos até o século XIX, há poucos indícios da presença otomana na cidade, ao contrário dos lugares dos Bálcãs por onde eu passara na última semana. Belgrado foi alvo de bombardeio pelos alemães na Segunda Guerra Mundial e pelas forças da Otan em 1999, para forçar a saída da Sérvia da região do Kosovo, que acabou resultando na independência deste último. Os danos desse bombardeio podem ser conferidos numa das avenidas principais, onde os escombros do edifício do Ministério da Defesa pairam para recordar aqueles acontecimentos funestos.

Mapa de Kalemegdan - fonte: site da cidadela

            Sem sombra de dúvida a atração de que mais gostei foi Kalemegdan, a cidadela onde Belgrado começou, hoje rodeada por um belo parque que leva seu nome. Conhecemos Kalemegdan no city tour matutino, quando o céu estava bem nublado. Voltei sozinho à tarde para percorrê-la com calma, absorvendo suas locações variadas, agora sob um sol tímido que cedeu lugar à chuva no dia seguinte, quando visitamos Novi Sad, a capital da Voivodina.

Muralhas do lado norte da cidadela de Kalemegdan.

           Localizada na colina de frente para a confluência dos rios, Kalemegdan tinha visão privilegiada das cercanias. Ao contrário de outras fortificações construídas para defesa e nunca utilizadas, esta foi testemunha de inúmeras batalhas, sendo destruída algumas vezes ao longo dos séculos. A fortaleza atual foi erguida basicamente do século XVIII para cá, nos domínios turco e austro-húngaro.

O Portão Karadjordje na cidadela, homenageando o líder do primeiro levante sérvio contra o Império Otomano. 

              A entrada mais usada pelos turistas é do lado sul, exatamente no final do calçadão principal do centro, e nos leva atravessando o parque ao Portão de Istambul, cujo nome provavelmente tem origem no início da estrada que levava à capital do Império Otomano. Este é o primeiro de vários portões e muros  que cercam a fortaleza, constituída de dois núcleos cercados de muralhas, a cidadela inferior e superior.  O mais legal é que os vários níveis de muralha são diferentes entre si, com o formato dos portões variando, alguns acessíveis por pontes sobre fossos, outros não.

O Portão de Istambul

               O destaque nessa sucessão de muros até se chegar ao núcleo de Kalemegdan vai para a Torre do Relógio (ou Sahat Kula em sérvio), a estrutura mais alta da muralha, exatamente sobre um dos portões, que leva seu nome. A torre de 27 metros de altura foi erguida no século XVIII, num período em que o domínio de Belgrado se alternava entre turcos e austríacos, mas seu estilo barroco remete aos últimos.

A Torre do Relógio

                  Junto ao fosso da Torre do Relógio estão dispostos diversos tanques e objetos de artilharia. O acervo pertence ao Museu Militar, cujas instalações ficam em frente. O museu contém  centenas de artefatos pertencentes à Sérvia e a seus inimigos de confronto, e abrange dois milênios de ações militares nos conflitos em que a Sérvia esteve envolvida, incluindo o último, o bombardeio pelas forças da Otan há dezenove anos.

Canhões e tanques: o acervo externo do Museu Militar no fosso da Torre do Relógio.

                   Após passar pelos diversos portões nas muralhas, se chega ao núcleo alto da cidadela, de onde se tem uma vista imperdível do Danúbio e do Sava. Aqui está o Monumento do Vitorioso. A estátua majestosa sobre uma coluna dórica foi inaugurada  no centro de Belgrado em 1928 com o objetivo de comemorar a libertação sérvia após séculos de domínio austríaco e otomano. Acontece que o nu frontal do homem vitorioso escandalizou as opiniões da época e a escultura foi removida para o parque, mais longe dos olhares pudicos. De qualquer forma, achei a localização atual excepcional para o monumento, que apresenta um homem contemplando o horizonte com a espada repousando na mão direita e na esquerda um falcão, símbolo da liberdade para os eslavos. Um detalhe crucial que nos diz muito sobre o espírito sérvio: em sua nova posição, a estátua tem o olhar voltado para Viena, a capital do Império Austro-Húngaro, por sinal banhada pelo mesmíssimo rio Danúbio.

A estátua do Vitorioso sobre a fortaleza, de frente para o Danúbio

            Bem perto do monumento está outra atração popular, o Poço Romano, que de romano não tem nada, muito menos a idade, e nem é poço e sim uma cisterna. Foi escavado somente  no século XVIII para guardar água para a cidadela e é ladeado por duas escadarias em espiral que descem ao seu fundo a sessenta metros de profundidade, por onde a água seria trazida à superfície. Com lendas macabras ao longo dos anos envolvendo prisoneiros jogados dentro do poço, hoje somente a parte superior da escadaria é aberta a visitação. O lugar é tão claustrofóbico que dizem que até Alfred Hitchcock ficou impressionado quando o visitou, certamente concebendo novas ideias mirabolantes para suas cenas de suspense e terror. 

          O parque de Kalemegdan ainda oferece atrações que vão interessar às crianças, como o zoológico de Belgrado e um trenzinho que percorre suas alamedas. Ele aparece na foto de abertura do post, passando sob a Torre do Relógio

O Hotel Moscou

             Hospedaram-me no Hotel Prag, na borda do centro num bairro feio, mas com acesso fácil a pé às atrações do centro da cidade, que não é tão grande assim. O hotel tradicional quatro estrelas com look antiquado, inaugurado em 1929, tinha quarto bom e café razoável. Considerei bem melhor do que o alojamento originalmente designado nos folhetos da excursão, um hotel moderno do outro lado do rio Sava, longe de tudo. O caminho curto para o centro incluía passar pela porta do hotel mais icônico de Belgrado, o Hotel Moscou. Só pelos nomes dos dois hotéis já dá para perceber a influência eslava sobre a Sérvia no início do século passado... O Hotel Moscou é mais antigo, construído por russos em 1908 com sua bela fachada art nouveau em azulejos. Tem como apelo adicional seis suites nomeadas com hóspedes famosos como Albert Einstein, Luciano Pavarotti, Robert de Niro e o já mencionado Hitchcock.

O Museu Nacional e a estátua do Príncipe Mihailo na Praça da República

        Dois quarteirões adiante chegamos à Praça da República (Trg Republika). Aqui se inicia o setor do centro cujo aspecto remete à Europa Central, impressão reforçada pelos ônibus elétricos. A praça principal de Belgrado é dominada pelos prédios do Museu Nacional, o maior e mais antigo da Sérvia, e do Teatro Nacional. A estátua de bronze homenageia o Príncipe Mihailo, um dos responsáveis pela liberação da Sérvia do domínio turco. Curiosamente havia ali um outro Portão de Istambul, onde os otomanos costumavam empalar em estacas seus inimigos. O portão, considerado um símbolo da dominação, foi derrubado por ordem do próprio Príncipe Mihailo em 1866, dando lugar ao teatro.

Teatro Nacional na Praça da República

            Atravessando o centro e ligando a área da Praça da República à cidadela está o calçadão comercial que leva o nome do príncipe, a rua Kneza Mihaila. Ao longo do seu quilômetro de extensão estão concentradas várias lojas importantes e de grife, além de restaurantes. Com seus prédios bem cuidados de mais de cem anos de idade, a rua é muito agradável para se caminhar, com algumas fontes enfeitando suas esquinas.

Rua Kneza Mihaila

          A outra grande atração de Belgrado está localizada fora do centro. A gigantesca Igreja de São Sava, uma das maiores igrejas ortodoxas da Europa com capacidade para 10.000 fiéisestá sendo construída há oito décadas, com paradas e retomadas de construção. São Sava foi o fundador da igreja ortodoxa sérvia no século XIII, e como represália aos sérvios seus restos foram incinerados em 1595 a mando do grão-vizir turco no local onde hoje se situa a igreja. Atualmente só estão prontos a bela fachada, a cúpula interior, vitrais, os cinquenta sinos e a cripta no subsolo, que impressiona com os afrescos no teto e lustre. No interior da igreja, operários em andaimes continuam os trabalhos. A altura total incluindo a cruz dourada sobre o domo é de 82 m, o que permite que o templo se destaque no horizonte de Belgrado, ainda mais que se situa exatamente no final de uma longa avenida que a conecta à Praça da República.

A Igreja de São Sava
A cripta no subsolo de São Sava

        Na praça em frente à igreja está uma estátua maltratada pelos pombos retratando Nikola Tesla, o genial físico croata de pais sérvios, com a inscrição contendo a fórmula de cálculo da densidade de fluxo magnético cuja unidade é o tesla.  Tanto aqui quanto em sua estátua em Zagreb ele é retratado pensativo e cabisbaixo (veja aqui o post da capital da Croácia com a foto).

          A seis quadras de distância dali há um museu ótimo dedicado a Tesla, onde são relatadas suas inúmeras invenções envolvendo a eletricidade e magnetismo, incluindo visita guiada  com um filme sobre sua vida e demonstrações ao vivo (acesse aqui o horário das visitas em inglês). Tesla, que morreu pobre, era visto nos últimos anos de sua vida em Nova Iorque como o estereótipo do cientista - excêntrico e recluso. O aeroporto de Belgrado, por onde saí rumo à Suíça, leva seu nome. Aliás, é interessante notar que todos os aeroportos das capitais dos Bálcãs visitadas nesta viagem homenageavam personalidades de renome internacional ou histórico - além de Tesla, Madre Teresa em Tirana, e Alexandre, o Grande em Skopje.

A estátua de Nikola Tesla no parque fronteiro à Igreja de São Sava, que aparece parcialmente refletida no vidro.

          Foi no restaurante Le Moliere, localizado na rua Zmaj Jovina, transversal do calçadão central, onde provei um dos pratos típicos da Sérvia, o Karadjordje Schnitzel (pelo visto este outro líder sérvio concorre com o Príncipe Mihail em termos de homenagens). Conta a história que na década de 50 um chef renomado de Belgrado quis recepcionar uma eminência russa visitante preparando um Frango à Kiev. Porém estava sem os ingredientes tradicionais e resolveu trocar o frango por carne bovina e o recheio de manteiga por kajmak, uma especialidade láctea balcânica, que assim como a versão original, escorre quente assim que cortamos a carne empanada. O russo teceu altos elogios e o prato entrou para o lista de especialidades da capital, podendo também ser oferecido com carne de porco. Apesar de um tanto pesado, o gosto estava excelente. Ri muito depois quando soube que os irreverentes sérvios logo apelidaram o prato de "Sonho de Virgem", pelo formato inusitado do empanado. Segue abaixo a foto feita com o celular, foi até bom eu só a ter tirado após algumas garfadas, para que aparecesse o gorduroso kajmak.

Karadjordje Schnitzel

⏩➧ Este é o décimo quarto post com os relatos da segunda viagem aos Bálcãs. Para visualizar os demais, acesse Atravessando os Bálcãs: Montenegro, Albânia, Macedônia e Sérvia.

 Postado por  Marcelo Schor  em 27.01.2019 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

O comentário será publicado após aprovação