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A Fortaleza de Louisbourg em Cape Breton


Bastião do Rei na Fortaleza Louisbourg

              O terceiro e último dia da excursão a Cape Breton foi dedicado a conhecermos a Fortaleza de Louisbourg. Um dos sítios históricos mais famosos do Canadá, é fruto do trabalho extraordinário de reconstrução de uma fortaleza erguida em meados do século XVIII pelos colonizadores franceses, tendo atraído 140.000 visitantes só no ano passado.


Esquema da fortaleza mostrado no folheto distribuído aos visitantes.

               A história da fortaleza reflete a troca de mãos pelo qual passou a Nova Escócia ao longo dos anos. Cape Breton inicialmente estava sob o domínio francês (não custa lembrar que breton é a designação em francês e em inglês para os habitantes e o idioma celta da Bretanha, a região no noroeste da França). Os franceses já tinham perdido o restante da Nova Escócia para os ingleses, quando em 1713 decidiram erguer Louisbourg para defender seus interesses na área. A construção de uma das maiores fortalezas francesas na América do Norte englobava a fortificação propriamente dita e uma cidade com casas e comércio. O trabalho levou décadas e custou uma fortuna devido à corrupção da época e ao terreno pantanoso da região. Em 1744 estourou a guerra entre franceses e ingleses e no ano seguinte a fortaleza  capitulou diante das forças britânicas. Três anos depois voltou ao domínio francês para novamente sucumbir ao inimigo em 1758. Temendo que um dia a fortaleza estratégica voltasse mais uma vez ao domínio francês, os ingleses decidiram então destruir Louisbourg, deixando-a completamente em ruínas. Portanto, a fortaleza inexpugnável que seria o orgulho da França na América do Norte durou pouco mais de quatro décadas. Os residentes civis puderam voltar a seu país, mas os militares se tornaram prisioneiros de guerra e foram enviados à Inglaterra. Após a conquista derradeira de Louisbourg, as tropas inglesas do General James Wolfe rumaram para o oeste e tomaram Quebec e Montreal no ano seguinte,  encerrando de vez as ambições francesas no atual Canadá. Wolfe morreria no meio do caminho, vítima de três tiros numa batalha em Quebec.

Casario em Louisbourg

              Louisbourg permaneceu devastada por exatos dois séculos até que uma crise econômica séria na área devido ao fechamento de minas de carvão levou o governo a reconstruir uma parte da fortaleza em 1961, visando gerar empregos. Sob pesquisa meticulosa, um quarto da antiga cidade e fortificação foi reconstruída nos mínimos detalhes, usando pedras originais. Hoje os empregados que trabalham em Louisbourg continuam sendo habitantes das proximidades, empenhados em reproduzir o dia a dia de militares e civis no longínquo ano de 1744, o auge de Louisbourg, quando somente Quebec tinha importância maior na colônia francesa. O uso de vestimentas e utensílios, além da reprodução de costumes, ajudam a nos remeter àquela época.

O Bastião do Rei à direita e a muralha que o separa do Oceano Atlântico, à esquerda

              No dia da visita o tempo estava miserável desde a madrugada, com a chegada de uma frente fria. Deixamos Baddeck sob uma chuva persistente e ao nos aproximarmos da fortaleza a fúria das ondas batendo na costa assustava. Não era um tempo indicado para uma visita ao ar livre, mas não se pode negar que a neblina e a chuva contribuíram para dar um ar misterioso e desolado à fortificação desativada.

Capela Militar no Bastião do Rei
A sala de jantar dos aposentos do governador

         Felizmente a primeira parte do tour consistiu em percorrer o Bastião do Rei, a grande e imponente construção enfeitada por uma torre com sino, onde funcionava o quartel, a administração e os alojamentos militares. Após sair do ônibus e correr pela chuva, nos abrigamos na capela militar, que apesar do nome, atendia também aos civis como único templo católico existente. O altar conta com uma pintura de São Luís, também conhecido como o rei francês Luís IX; entretanto o nome da fortaleza homenageia outro Luís famoso, Luís XIV, o Rei Sol, que  reinava quando Louisbourg foi planejada. Lá uma guia local, que nos acompanhou em boa parte da visita, nos narrou a história da fortaleza. O único problema foi que não consegui compreender várias palavras do que ela dizia. Não sei se foi a acústica do lugar ou o sotaque da guia local, que parecia não ser canadense. Em seguida, passamos aos confortáveis aposentos do governador, ainda no Bastião, com a sala de jantar, quartos e escritórios reconstituídos. Na realidade o governador, normalmente um militar de mais idade, deixava as questões administrativas para os subordinados e se dedicava principalmente a representar o rei.

Poço na rua principal

        No pátio gramado imprensado entre o prédio e a muralha costumam acontecer encenações de manobras militares com os uniformes da época e disparos de canhões e mosquetes. Estas demonstrações fazem a festa dos visitantes, especialmente as crianças. Naquele dia estavam canceladas devido ao tempo inclemente, mas depois ao caminharmos pelas ruas vi alguns "soldados" franceses nas portas das casas.

           Outra atividade que ficou difícil seguir naquele dia foi se aventurar pela parte do complexo ainda em ruínas. Basta caminhar pela trilha chamada Ruin's Walk, com 2,3 quilômetros de extensão. Só pelo seu comprimento já se pode ter uma ideia do tamanho original de Louisbourg.

 L'Epée Royale na rua principal, onde se localizava uma taverna e que hoje abriga um restaurante

             Ao sair do Bastião do Rei, a chuva tinha amainado e iniciei então a visita à outra parte de Louisbourg, os cinco quarteirões de casas dispostas entre o alojamento militar e o cais, em que residia a população civil. No final da rua principal um portão amarelo se destaca no cais, o Portão Frédèric, por onde entrava a maioria das mercadorias que chegavam à colônia por via marítima. O portão só foi concluído em 1742, poucos anos antes da primeira tomada da fortificação pelos ingleses.

A rua principal, Rue Toulouse, com o Portão de Frédèric ao fundo

         A diversão era entrar nas casas que estavam com a porta aberta e ver o que nos aguardava. Podia ser uma encenação de atividade da época, um instrumento curioso, uma exposição histórica ou simplesmente um aposento mobiliado.  Dentre as casas que podem ser visitadas estão a Padaria do Rei, que fornecia o pão aos militares e onde os turistas podem comprar pão recém-saído da fornalha antiga, e a Casa do Engenheiro, onde moravam os engenheiros militares responsáveis pelos projetos de construção em Louisbourg.

Rua à beira-mar. A casa com a mansarda foi onde almocei.

              Numa das casas à beira-mar um homem tocava um instrumento surpreendente do qual eu jamais tinha ouvido falar. O hurdy gurdy é  conhecido em português pelo também estranho nome de viela de roda. A denominação se justifica pela presença de uma roda dentada a manivela que fricciona as cordas, funcionando como um arco de violino. Cara de violino o hurdy gurdy tem, mas o incrível é que o som produzido parece bastante com o da gaita de foles. Eu não saberia diferenciá-los. Com origem na Idade Média na França, é comum ver o instrumento sendo tocado junto com a gaita de foles em apresentações folclóricas. Nada mais representativo para esta área da Nova Escócia, um instrumento francês que emite som escocês...

O hurdy gurdy

         Chegada a hora do almoço, me encaminhei para a casa ao lado, onde está o restaurante Grandchamps, em que soldados e marinheiros costumavam cear séculos atrás. Inicialmente, a refeição não estava inclusa no pacote da excursão, mas como não pudemos fazer o passeio de observação de baleias no dia anterior, para compensar a guia comunicou que o almoço ficaria por conta da organizadora. Ótima notícia! A refeição à luz de velas recria o ambiente do século XVIII. Não se tratava apenas do mobiliário característico, da indumentária medieval das garçonetes e da ausência de luz elétrica. O único talher disponível para uso era a colher, como era costume na época, nada de garfo, faca ou saleiro na mesa. Para colocar o sal, por exemplo, o pegávamos do recipiente com o verso da colher. Para entrar ainda mais no clima, fomos instados a pendurar um babador no pescoço, como faziam os comensais antigamente. O menu constava de sopa de cebola ou de ervilha e de um prato principal, que podia ser escolhido entre frango ao molho de cogumelo e hadoque. Escolhi o filé de frango, que estava macio o suficiente para que eu conseguisse cortá-lo com a colher. Desprovido de talheres adequados, finalizar o almoço demorou um pouco mais que o habitual.

Detalhe da mesa, com os utensílios de época. Só lamentei a presença do celular, estragando o clima da foto...

            Ao sairmos do restaurante, a chuva tinha cessado e encaramos a pior parte da excursão: os longos 430 quilômetros da volta para Halifax, em grande parte pela mesma estrada que viemos dois dias antes. Paramos novamente na entrada de Cape Breton, onde há um escritório de turismo com folhetos e informações sobre a ilha. Chegamos ao anoitecer em Halifax, e no dia seguinte começaria a segunda parte do meu roteiro, viajando sozinho pelas demais Províncias Marítimas, me deslocando por ônibus intermunicipal.

Informações úteis sobre a Fortaleza de Louisbourg:

Endereço: 259 Park Service Road em Louisbourg, a 110 quilômetros de Baddeck. O local não é servido por transporte público.
Horário de funcionamento: em alta temporada (maio a meados de outubro), diariamente de 9h30min às 17h. Nos demais meses, somente nos dias úteis de 9h30min às 16h.
Preço: adultos em alta temporada pagam $17,60, mas nossa entrada estava incluída no pacote. Veja a tabela completa aqui.  

A causeway que separa a ilha de Cape Breton do continente.

          Não poderia terminar os relatos sobre Cape Breton  sem mencionar o Celtic Colours. Trata-se de um festival que ocorre  sempre na primeira quinzena de outubro, durante nove dias, de um sábado ao domingo seguinte. A festa coincide com o ápice da troca de cores da folhagem das árvores e foca em apresentações de dança, música, arte e culinária com ênfase nas tradições celtas, oriundas do outro lado do Atlântico. O festival ocorre simultaneamente em diversos núcleos urbanos de Cape Breton, incluindo Baddeck, Sydney e até Chéticamp, onde a influência francesa é bem maior que a escocesa. A edição de 2018 incluiu uma noite de concerto com gaita de foles, violino e harpa, adivinhem onde? Na capela da fortaleza. Deve ter sido um concerto inesquecível.  Pelos comentários, o festival deve ser imperdível, e há até nessa época uma versão especial da excursão em outubro com duração de um dia a mais, dedicado às atrações do Celtic Colours.

             A cultura escocesa está bastante arraigada na região, fazendo jus ao nome da província. Há até uma escola que ensina o gaélico, o idioma de origem celta que ainda é falado em partes da Escócia.

           No próximo post rumamos para a Ilha do Príncipe Eduardo.


⏩➧ Este é o terceiro post da série sobre as Províncias Marítimas. Para visualizar os demais, acesse Viagem às Províncias Marítimas Canadenses.


 Postado por  Marcelo Schor  em 27.05.2019 

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