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Charlottetown, o berço da Confederação Canadense


Hillsborough Square, a praça junto ao hotel.

            Charlottetown é a capital da Ilha do Príncipe Eduardo, uma das Províncias Marítimas canadenses banhadas pelo Atlântico. Pequena e charmosa, com apenas 35.000 habitantes, não tem uma grande atração, mas encanta pelo conjunto, pelas inúmeras quadras de casas fotogênicas e pelo estilo de vida pacato. Sem nenhum jeito de capital, parece um desses bairros de subúrbio americano que vemos em filmes e seriados de TV, onde o tempo vai passando sem maiores surpresas. Já me encantei pela cidade logo na caminhada de pouco mais de um quilômetro entre a rodoviária e o hotel. O céu de um azul irretocável contribuiu bastante para minha boa impressão durante a estadia de duas noites, deixando para trás o mau tempo do dia anterior em Cape Breton.  

O hotel onde fiquei. A janela do meu quarto é a última do telhado à direita.

            Hospedei-me no Sydney Boutique Inn, a poucas quadras da rua principal numa vizinhança bem bonita e tranquila. O Sydney Inn se localiza ao lado de uma praça com casas pitorescas, onde as árvores já começavam a trocar a cor de suas folhagens no início de outono. O hotel era muito bom mas um pouco caro; reservei o tipo de quarto mais barato, no sótão, o que significava que as janelas eram mansardas, menores que as janelas tradicionais, e uma das paredes do quarto era inclinada, acompanhando o telhado da construção. Detalhe curioso era o elevador, instalado exatamente na divisa entre os dois prédios que formavam o hotel e cujos pavimentos eram desnivelados entre si. Assim o elevador parava em dois segundos andares e dois terceiros andares, com as portas se abrindo alternadamente em cada lado do elevador. Inusitado.


Sydney Street

           Afinal quem era a tal Charlotte? Sophia Charlotte Mecklenburg-Strelitz foi a esposa do rei Jorge III da Inglaterra, uma nobre nascida no norte da atual Alemanha em 1744. Não custa recordar que naquela época os reis ingleses também eram soberanos de Hanôver, que fazia parte do Sacro Império Romano-Germânico assim como a vila natal da rainha consorte. Charlotte era ainda descendente de portugueses e batizou também a cidade mais importante da Carolina do Norte, Charlotte, que significativamente se situa no Condado de Mecklenburg.

          Jorge III enlouqueceu nos últimos anos de seu reinado e foi sucedido por dois filhos em sequência, Jorge IV e Guilherme IV, que não deixaram herdeiros. Mas um terceiro filho, que jamais virou rei, foi quem passou para a posteridade. O Príncipe Eduardo, além de ser comandante-chefe das tropas inglesas em Halifax por seis anos, fazendo inúmeras obras por lá, ainda veio a se tornar pai da soberana mais marcante e longeva do século XIX, a Rainha Vitória. Portanto a capital da província tem o nome da mãe, e a ilha e província em que está localizada, o nome do filho, enquanto a neta batiza incontáveis lugares espalhados pelo mundo do Canadá à Austrália. 

Lugares mencionados no post

           Charlottetown foi fundada em 1720 por franceses oriundos da Fortaleza de Louisbourg (onde por coincidência eu tinha estado no dia anterior), que a chamaram de Port La Joye. No mesmo ano em que Louisbourg caiu de vez em mãos inglesas, 1758, aconteceu o mesmo com Port La Joye, com os franceses sendo expulsos. Anos mais tarde seu nome foi trocado para o atual.

            A cidade entrou para a história como "o berço da Confederação Canadense". Este é o lema de Charlottetown, repetido à exaustão em sua divulgação turística. Foi lá que em 1864 ocorreu a primeira conferência entre representantes das províncias sob domínio britânico para discutirem uma união que se tornaria o Canadá. Era uma época conturbada, com os vizinhos Estados Unidos numa assustadora Guerra Civil. Em 1867 foi sacramentada a Confederação Canadense, reunindo Ontário, Quebec, Nova Escócia e New Brunswick. E onde foi parar a Ilha do Príncipe Eduardo? Por incrível que pareça, ela inicialmente não fez parte da Confederação, por não terem conseguido resolver seu problema mais sério. Décadas antes a administração inglesa resolveu lotear as terras da ilha instituindo uma loteria, para incentivar o povoamento. Quem ganhasse um bilhete premiado se tornava dono do lote. Porém muitos lotes acabaram caindo em mãos de nobres ingleses especuladores, que os deixaram desabitados, virando uma dor de cabeça para os habitantes. Sem solução na ocasião, o problema só foi resolvido seis anos mais tarde em 1873, quando surgiu verba para desapropriar os terrenos e assim Príncipe Eduardo se tornou a quinta província canadense. Antes de aderir à Confederação, a ilha chegou até a entabular conversações para se tornar um estado norte-americano.

Province House

          Bem no coração do centro, a Province House foi o lugar onde aconteceu a reunião histórica. Normalmente se pode conhecer a sala onde o evento ocorreu e nos meses de verão atores vestidos a caráter reproduzem os acontecimentos. Entretanto encontrei a sede neoclássica da Assembleia Legislativa fechada e envolta em tapumes. Parece que a situação já perdura por muitos meses. Os turistas têm que se contentar em apreciar a maquete exposta no vizinho Confederation Centre of Arts, um centro de artes de estilo moderno inaugurado no centenário da reunião em 1964, quando cada uma das dez províncias canadenses contribuiu para sua construção com uma quantia proporcional à sua população. O Confederation Centre conta com uma exposição e um filme de 18 minutos sobre a Province House, mas não é preciso o turista perder este tempo precioso o assistindo na visita, ele está disponível on-line  neste link.

Os dois conferencistas xarás argumentam eternamente diante da Basílica.

              A dois quarteirões de distância na rua que se inicia em frente à Province House, a Great George Street, um aspecto inacreditável da conferência aparece. Trata-se das estátuas de dois dos 23 participantes da conferência (conhecidos hoje como Fathers of Confederation) confabulando. Não haveria nada de mais se estes representantes de Príncipe Eduardo e de New Brunswick não tivessem exatamente o mesmo nome, John Hamilton Gray. Haja coincidência!

Casas na Old George Street.

                Este quarteirão da Great George Street é pródigo em atrações. Na calçada das estátuas está uma fileira de casas que datam da época, pintadas em tons pastel, e que se tornaram uma das marcas registradas de Charlottetown, formando um Patrimônio Histórico canadense. Do outro lado da rua está a Basílica de St. Dunstan, um belo templo católico reconstruído no estilo neogótico em 1916 após um incêndio. Suas três torres bem pontiagudas se destacam no céu de Charlottetown, servindo de referência.

Old George Street e a Basílica.

Basílica de St. Dunstan

           Caminhando para o oeste, cheguei à área que outrora era a mais nobre da cidade. Algumas casas elegantes à beira d'água são verdadeiras mansões vitorianas. Uma das mais bonitas é a Beaconsfield House, aberta a visitação, com os aposentos remontando ao século XIX. A rua que começa ao seu lado, West Street, é um festival destas casas cujas fachadas enchem os olhos.

Beaconsfield House

          Em frente à Beaconsfield House, vastos jardins nos introduzem à Government House, onde reside o governador da província. Uma única observação: o posto de governador-tenente no Canadá não tem nada a ver com a administração da província, sendo o representante da Rainha Elizabeth na ilha. Neste caso específico, uma representante. O equivalente ao nosso cargo de governador é o premiê. A Governor House, esta sim uma mansão verdadeira, foi construída em 1832 já com o propósito que mantém até hoje. Seu terreno original era muito maior; grande parte foi cedida à cidade e hoje constitui o Victoria Park, a maior área verde de Charlottetown. Sendo a residência do representante real, a casa também acolhe a família real em visitas à ilha, como na participação de Elizabeth II nas comemorações do centenário da conferência histórica, em 1964.

Government House

          Separando o Victoria Park das águas da foz do rio, uma trilha ótima para caminhadas nos leva ao Old Battery Point, um posto defensivo constituído de alguns canhões criado durante as Guerras Napoleônicas que jamais precisou ser usado.

A trilha junto ao Victoria Park e ao Hillsborough River

Old Battery Point

       Falando em caminhadas, os mapas do centro histórico vêm com duas trilhas pré-marcadas, indicando o roteiro a seguir para conhecer as atrações.

Prefeitura de Charlottetown em estilo inglês na Queen Street

          Seguindo o estilo da cidade, minhas duas refeições foram em lugares despretensiosos, ambos na rua principal, a Queen Street: um combo de frango agridoce no Canton Cafe e um fettuccine verde no Casa Mia. Saí satisfeito em ambas. A Queen Street ainda sedia em uma de suas esquinas uma autêntica instituição local: a Cows Creamery, eleita em algumas pesquisas como o melhor sorvete do Canadá. Achei o sorvete bom, mas nada de excepcional.

Monumento aos Imigrantes Irlandeses, diante da desembocadura de dois rios no Estreito de Northumberland

           No próximo post, vamos conhecer o interior da Ilha do Príncipe Eduardo.

⏩➧ Este é o quarto post da série sobre as Províncias Marítimas. Para visualizar os demais, acesse Viagem às Províncias Marítimas Canadenses.


 Postado por  Marcelo Schor  em 07.06.2019 

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