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Fenômeno raro: um arco-íris ao entardecer atravessa a Enseada de Botafogo. Terá alguém achado o pote de ouro na Urca? |
A
Urca é um dos mais bonitos e charmosos bairros do Rio de Janeiro, com pontos turísticos clássicos como o Pão de Açúcar. Foi lá que a cidade do Rio de Janeiro foi fundada por Estácio de Sá em 1565. Cercada por morros e água por quase todos os lados, é um oásis de tranquilidade na Zona Sul carioca, sendo um bairro eminentemente residencial com muitas casas e prédios com poucos andares. Caminhar pela calçada que acompanha a mureta da orla é uma experiência única, seja para apreciar a vista linda da baía e do Corcovado, ouvir o bater da marola nas rochas abaixo, acompanhar os vários pescadores debruçados com seus anzóis ou simplesmente encostar na murada para beber um chope do icônico Bar da Urca.
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Mapa da Urca, Enseada de Botafogo e arredores. |
. Este ambiente idílico foi divulgado em todo o país ao servir de cenário para a novela
A Gata Comeu, rodada em 1985 numa época em que não existiam os estúdios em Jacarepaguá, e os atores gravavam as externas todas em locações reais espalhadas pelo bairro. Quem assiste à reprise da novela constata que pouca coisa mudou nestes 35 anos, ao contrário dos bairros vizinhos. A Urca é nostalgia pura.
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A mureta da Urca com o paredão de prédios do Flamengo e o Monumento a Estácio de Sá ao fundo |
O que poucos sabem é que há 455 anos Estácio de Sá fundou a cidade numa ilha. Urca e Pão de Açúcar faziam parte então da
Ilha de Trindade, separados da terra firme. A região da Praia Vermelha era um estreito ligando Botafogo ao oceano, e foi aterrada somente no final do século XVII, integrando a Urca ao continente.
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Enseada de Botafogo e Corcovado vistos da Urca. |
O bairro da Urca no entanto é bem mais recente, com quase cem anos de idade. Até então as águas da Baía de Guanabara batiam direto no rochedo do morro da Urca. Foi em 1921 que se fez o aterro onde hoje está assentada a maior parte das edificações do bairro. Deram ao novo núcleo urbano o nome do morro que o delimita, assim batizado por lembrar a embarcação holandesa de fundo chato para transporte de cargas chamada de urca, utilizada até o século XVII. O interessante é que quem consulta a definição da palavra no Aurélio encontra também um segundo significado, o de "mulher gorda e feia" - fico imaginando como devia ser a embarcação.
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Típica rua interna da Urca, residencial e arborizada. |
Um de seus recantos mais pitorescos é o
Quadrado da Urca, situado na sua entrada. A reentrância da enseada na Avenida Portugal do tamanho de um quarteirão é cortada por uma ponte e hoje serve como ancoradouro, mas foi construída como piscina de competições de polo aquático em 1922. A praça adjacente que homenageia uma grande atriz de teatro, Cacilda Becker, contribui para aumentar o bucolismo do lugar. Os barcos mais simples contrastam com aqueles do vizinho Iate Clube, que era uma mera divisão náutica do Fluminense Football Club quando foi instalado nessa mesma época pela família Guinle. Aliás, pouca gente quando passa rente aos muros do Iate Clube atenta para os bonitos azulejos em painéis incrustados, com temas náuticos apresentando caravelas, peixes e timões entre outros.
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Quadrado da Urca |
Pequeno, com apenas 17 ruas e 7.000 moradores (dos quais o mais ilustre é sem dúvida o cantor Roberto Carlos), o bairro é dividido ao meio por uma praia minúscula, a
Praia da Urca. Junto a ela aparece em destaque uma construção branca erguida em 1922 para abrigar um hotel e balneário nos tempos em que a enseada não era poluída. Em 1935 lá foi instalado o
Cassino da Urca, o cassino mais famoso da capital federal, apresentando shows de cantores como Carmen Miranda e Maurice Chevalier. O período áureo durou até o jogo ser proibido pelo Presidente Dutra em 1946. O prédio serviu como sede da TV Tupi nas décadas seguintes até o encerramento de suas atividades. Após muito tempo abandonado, foi reformado há alguns anos para sediar a filial do Instituto Europeu de Design. É impossível não se notar a construção, já que ela praticamente invade a areia e é cortada ao meio pela única rua de acesso à parte restante do bairro.
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A Praia da Urca com o antigo cassino. |
Praia Vermelha:
Sua localização sui generis faz com que a Urca possua uma outra praia pública, desta vez oceânica, a
Praia Vermelha, num cenário de cair o queixo. Encravada entre os morros da Urca e da Babilônia, a praia deve seu nome ao tom de sua areia ao entardecer e é o ponto de partida do bondinho que sobe para o Pão de Açúcar. Local da sede de uma das mais prestigiadas instituições universitárias brasileiras, o Instituto Militar de Engenharia, a bela praia também é o ponto inicial de um dos caminhos favoritos dos cariocas, a
Pista Cláudio Coutinho.
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Praia Vermelha |
Sua denominação é uma homenagem ao treinador de futebol que foi técnico da Seleção Brasileira no final da década de 70 e faleceu em 1981 durante uma pesca submarina. A Pista Cláudio Coutinho possui 1.250 metros de extensão, margeando o costão do Morro da Urca e Pão de Açúcar. A trilha é muito segura por estar situada em área militar. Além do visual espetacular, vale a pena prestar atenção na fauna e flora locais, com destaque para os micos e pássaros. Não é à toa que a trilha também é conhecida como Caminho do Bem-te-vi. Anos atrás a quantidade de micos aumentou tanto que causou desequilíbrio ambiental e a solução encontrada foi introduzir jiboias na área para conter a explosão populacional dos símios.
Com exceção de uma rampa na parte inicial, o caminho é plano e acessível para todas as idades, com entrada gratuita e aberto atualmente de 6 às 18 horas somente nos dias úteis.
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Praia Vermelha e Morro da Babilônia vistos a partir da Pista Cláudio Coutinho. |
A rua de acesso à Praia Vermelha e à Urca, a Avenida Pasteur, é um prato cheio para os apreciadores de arquitetura clássica. Em sequência estão três joias públicas com fachadas bem conservadas:
- Palácio Universitário da UFRJ, inaugurado em 1852 para abrigar um hospício, o primeiro do país, que foi transferido posteriormente para o vizinho Hospital Pinel. Hoje o complexo da Avenida Pasteur sedia cursos da área de ciências humanas da universidade.
- Instituto Benjamin Constant, da última década do século XIX. Vale a pena parar para apreciar as altas colunas jônicas no pórtico de entrada da imensa sede da instituição, referência em educação de deficientes visuais.
- a sede regional da Companhia de Pesquisas de Recursos Minerais. Foi erguida no estilo neoclássico para abrigar o Palácio das Nações na Exposição Nacional de 1908, uma mostra gigantesca que fez história, montada na área então despovoada para comemorar o centenário da Abertura dos Portos por Dom João VI. Lá se localiza o Museu de Ciências da Terra, dedicado à geologia e paleontologia. A edificação encanta tanto pelo lado externo, com suas águias e leões esculpidos, quanto pelo interno, com um vitral na claraboia do salão. Pena que o museu esteja atualmente fechado para reformas.
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Instituto Benjamin Constant |
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Museu das Ciências da Terra |
A Praça General Tibúrcio na Praia Vermelha, onde termina a avenida, está recheada de memoriais. O primeiro relembra os militares mortos na Intentona Comunista de 1935. Antigamente o acesso à Praia Vermelha era bloqueado pelo prédio enorme onde se situava o quartel do 3º Regime de Infantaria. Foi nesse quartel que estourou um dos focos da Intentona. Bombardeado por forças terrestres que acabaram com a insurreição, o quartel foi depois demolido e cedeu seu lugar à praça. No entanto, bem mais alto é o Monumento aos Heróis de Laguna e Dourados, que ocupa o centro da praça e homenageia os soldados envolvidos em episódios do início da Guerra do Paraguai,
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Detalhe do Monumento aos Heróis de Laguna e Dourados na Praia Vermelha
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Além de um busto do Marechal Rondon, o espaço eclético ainda acolhe na beira do calçadão da praia uma estátua de
Frédéric Chopin, esculpida em bronze por um conterrâneo polonês do compositor. Foi inaugurada em 1944, em plena Segunda Guerra Mundial, quatro anos após a estátua de Chopin em Varsóvia ter sido destruída pelos nazistas (reconstruída após a guerra, foi uma das atrações que visitei na capital da Polônia -
veja aqui o post). Enquanto em Varsóvia o compositor olha para o lado e divisa o belo parque à sua volta, sua versão carioca aparece triste e pensativa com o rosto voltado para o chão, alheia à paisagem magnífica do Pão de Açúcar à sua frente.
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A estátua de Chopin |
Monumento a Estácio de Sá:
E já que mencionamos o fundador do Rio de Janeiro, o
Monumento a Estácio de Sá está localizado bem em frente à Urca, em pleno Parque do Flamengo, do outro lado da entrada da Enseada de Botafogo. O monumento foi inaugurado em 1974, projetado por um dos maiores nomes da arquitetura nacional,
Lúcio Costa, responsável pelos planos pilotos de Brasília e da Barra da Tijuca.
Trata-se de um obelisco de 17 m de altura em forma de pirâmide pontiaguda, de cujo pátio se tem uma vista espetacular da baía e do Pão de Açúcar (é certamente o local de onde se pode melhor apreciá-lo no ângulo pelo qual é mais conhecido). Com efeito, o vértice da base de pedra onde se situa o obelisco aponta direto para o local onde ocorreu a fundação da cidade, entre o próprio Pão de Açúcar e o morro Cara de Cão. Estácio de Sá visava então combater os franceses que anos antes haviam invadido a Baía de Guanabara comandados por Nicolas de Villegaignon.
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Monumento a Estácio de Sá |
. Nunca entendi muito bem o fato de o monumento ser tão abstrato, não tendo por exemplo uma estátua de Estácio - aparentemente não há nenhuma fonte confiável em que se pudesse basear suas feições. Afinal, o militar português morreu somente dois anos depois da fundação, após um combate na atual Praia do Flamengo, quando foi atingido por uma flecha envenenada disparada por índios aliados dos franceses, que o fez perder o olho. A batalha fatídica aconteceu em 20 de janeiro de 1567, justamente o dia do padroeiro do Rio, São Sebastião (nome de uma rua na Urca), sempre retratado também atingido por flechas.
Estácio acabou sendo o primeiro de uma autêntica dinastia de governantes no Rio: seu tio Mem de Sá era governador do Brasil na época e seu primo Salvador de Sá governou mais tarde o Rio por vinte anos. Como se não bastasse, o neto de Salvador, que tinha o mesmo nome, foi governador da capitania (que já não era hereditária, mas parecia...) por três vezes no século seguinte. Como para exaltar todo este vínculo familiar, Mem, Salvador e Estácio de Sá formam um corredor de três quilômetros de ruas contíguas no centro do Rio.
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O vértice da base aponta para o local da fundação da cidade, junto à Urca. |
O subsolo do monumento contém a base da pirâmide e a réplica da lápide de Estácio de Sá, que se encontra enterrado na Igreja dos Capuchinhos no bairro da Tijuca. O recinto, que continha ainda um centro de informações, está atualmente fechado, mas se pode apreciar seu portão de bronze, que apresenta relevos do brasão de Estácio de Sá e do mapa da Baía de Guanabara na época da fundação.
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O portão de bronze no subsolo, com o brasão e o mapa em relevo. |
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Ciclovia Mané Garrincha, que atravessa todo o Parque do Flamengo desde Botafogo até a Marina da Glória, passa bem na frente do monumento. Ótima pedida para um passeio a pé ou por bicicleta, para apreciar as paisagens que o parque e a baía oferecem.
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Ciclovia Mané Garrincha, com a Praia de Botafogo ao fundo. |
⇨ Quer conhecer o país no Mar Mediterrâneo onde Villegaignon é reverenciado como herói e dá nome à rua principal de uma de suas principais cidades turísticas?
Acesse aqui o post, uma das maiores surpresas que já encontrei em viagens.
⏬ Outros posts publicados no blog sobre o Rio de Janeiro:
Postado por Marcelo Schor em 15.11.2020
Achei simplesmente extraordinário e bastante interessante, pois, pouco tempo estive nestes locais e certamente presenciei todos os seus detalhes descritos neste artigo, mas só agora, fiquei sabendo desses ricos conhecimentos. Parabéns!!!
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Penso em fazer posts semelhantes para outros bairros do Rio, sempre rico em beleza e história.
ExcluirAmei a reportagem, tenho curiosidade de conhecer a Urca.
ResponderExcluirRealmente vale a pena, é um bairro único no Rio.
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