Place du Bourg-de-Four, na Cidade Velha de Genebra. Ao fundo sobre as edificações, a ponta da torre da Catedral. |
Conhecida mundo afora como centro financeiro e sede de inúmeras organizações internacionais, Genebra é o maior núcleo urbano da Suíça francófona. A cidade cosmopolita possui um centro histórico charmoso, que acaba ficando em segundo plano diante de outras atrações mais afamadas. No entanto, foi meu lugar preferido para caminhadas na cidade. Aliás, costumam dizer que Genebra é turisticamente inferior às cidades maiores da Suíça, mas achei estas considerações exageradas, pelo menos em relação a Zurique. Por sinal, apesar de já ter me hospedado lá algumas vezes (é ponto de partida excelente para bate-voltas), Zurique até hoje não ganhou um parágrafo sequer no blog.
Locais mencionados no post |
Situada numa pequena colina, a cidade velha pode ser alcançada por diversas ladeiras ou escadarias a partir da parte plana de Genebra. É aquele lugar onde vale a pena caminhar pelas ruas estreitas ladeadas por construções pouco alteradas nos últimos séculos. De vez em quando, somos surpreendidos quando as ruelas desembocam num terraço acolhedor, com vista para o burburinho da parte mais moderna da cidade abaixo.
O Terraço Agrippa d'Aubigné e suas cerejeiras. Ao longe, o jato d'água jorra no Lago Léman. |
A meio caminho do topo surge um largo bem simpático, com vários bistrôs e cafés com toldos cobrindo as mesas no meio da rua. É a Place du Bourg-de-Four, que era a praça central da Genebra medieval, onde funcionava o mercado. A largura irregular, o formato curvo e a inclinação (a praça sobe e depois desce) acrescentam um diferencial a mais para o ambiente acolhedor da Bourg-de-Four. Contam que os prédios que a rodeiam foram crescendo de tamanho com o acréscimo de andares à medida que Genebra se tornava um abrigo seguro para refugiados protestantes, perseguidos nos países católicos vizinhos.
Numa de suas extremidades está o Palácio da Justiça, que nasceu como convento. As irmãs clarissas fugiram para a francesa Annecy quando a Reforma eclodiu e o prédio foi reconstruído como um hospital, só se aproveitando a capela, que atualmente abriga uma sala de audiências. A austera sede do fórum judiciário surpreende ao incluir também uma cave de vinhos ainda em operação em seu porão, remanescente dos tempos do hospital, já que funciona desde o início do século XIX.
A fonte na Place du Bourg-de-Four |
Na parte mais elevada da colina se encontra a Catedral de Saint Pierre. Com a construção iniciada em 1160, a grande edificação (a maior igreja da Suíça) parece conter várias igrejas diferentes, dependendo do lado de onde se olha. A entrada principal na Cours St. Pierre mais parece pertencer a uma universidade ou museu devido ao pórtico neoclássico, enquanto suas torres na retaguarda foram erguidas no estilo gótico. Hoje um templo protestante, teve suas imagens destruídas durante a Reforma. A catedral tem importância histórica significativa por ter sido a igreja onde João Calvino pregou e divulgou sua reforma protestante. Há até uma cadeira de madeira batizada com seu nome, que teria sido usada por ele.
A Catedral de Genebra - miscelânea de estilos arquitetônicos no templo |
O destaque na visita vai para a Capela dos Macabeus, uma reentrância meio escondida à direita da entrada, construída no século XIV e que pode passar despercebida aos mais apressados. Erguida para abrigar uma tumba, a capela foi transformada em depósito de sal e munição durante a Reforma. Remodelada no século XIX, hoje possui lindos vitrais ao redor do teto altíssimo pintado com afrescos. Sua denominação é uma homenagem aos sete santos mártires macabeus, irmãos mortos a mando do rei sírio Antíoco, que dominava a Judeia na época. O massacre foi realizado quando se recusaram a comer carne de porco, e ocorreu pouco antes da revolta comandada por Judas Macabeu, que deu origem à festividade judaica de Hanukkah.
As torres da parte de trás da catedral |
A poucos passos da entrada da catedral está um dos museus mais interessantes de Genebra, a Maison Tavel. O prédio privado mais antigo da cidade tem seis andares do porão ao sótão e leva o nome da família que ali residiu do século XIII ao XVI. No entanto, o casarão sofreu um incêndio em 1334 que só poupou os porões, sendo reconstruída com torres e fachada de pedra que lhe dão um ar de minicastelo. Suas exposições compõem o Museu da História Urbana e da Vida Cotidiana, com pinturas, gravuras, móveis e objetos que evocam o passado da cidade e de seus habitantes ao longo do período de existência da casa. Um dos andares ainda mantém sua configuração do século XVIII, recriando uma residência dos séculos passados.
A cereja do bolo no museu é sem dúvida a maquete Magnin, ocupando grande parte do sótão, e que levou dezoito anos para ser montada pelo arquiteto que lhe dá o nome. O modelo com casas em zinco e telhados em cobre é o maior da Suíça e se espalha por 32 m² na sala. Rico em detalhes que enchem os olhos, mostra como era Genebra na primeira metade do século XIX. Nele aparecem todas as edificações do centro antigo mencionadas neste post, com as torres da catedral se elevando acima dos telhados genebrinos.
A Maison Tavel, à Rue du Puits-Saint-Pierre 6, está aberta diariamente de 11 às 18h, exceto às segundas. A entrada é franca para as exposições permanentes, que incluem a maquete.
A formidável maquete na Maison Tavel, com a cidade entre o Rio Ródano, o Lago Léman e o Parc des Bastions (na parte esquerda inferior).. |
Na mesma rua se encontra outra atração gratuita, o Arsenal Antigo (L'Ancien Arsenal), que hoje abriga os arquivos do Estado. Sob suas arcadas, um espaço com calçamento em pedrinhas abriga cinco canhões da época em que defendiam Genebra 200 anos atrás. Embelezando a mostra, três belos afrescos na parede retratam momentos-chave da longeva história da cidade, da visita do imperador romano Júlio César no ano 58 à recepção de refugiados huguenotes franceses após terem seus direitos revogados pelo rei Luís XIV em 1685.
Canhões no térreo do Arsenal Antigo |
Poucos passos adiante, chegamos à Rue de l'Hôtel de Ville, que lembra as ruas de Berna pelas bandeiras enormes de cantões desfraldadas nas fachadas ao longo da via. Como não podia deixar de ser, o imponente edifício da Prefeitura ocupa uma grande área na rua. Seu pátio interior impressiona os visitantes, rodeado por vários níveis de andares arqueados e com balaústres. Pena que estivesse em obras quando o visitei, com os andaimes me impedindo de apreciar os detalhes do prédio que há 550 anos é a sede do governo da cidade e do cantão (curiosamente o nome oficial do cantão é "República e Cantão de Genebra", relembrando a época em que Genebra era independente, previamente à sua entrada na Confederação Suíça).
Cours St.-Pierre |
Se você contornar o prédio da Prefeitura, vai chegar à Promenade de la Treille, um amplo terraço com uma vista bacana para o verde Parc des Bastions abaixo. Um banco bem longo acompanha toda a murada, e segundo os genebrinos se trata do "maior banco de madeira do mundo", com 126 metros de extensão. Será que consta no livro dos recordes mundiais? Ótimo para uma parada estratégica para descanso, o terraço é sombreado por castanheiras centenárias; uma delas, a dita La Treille, é a árvore oficial de Genebra. Já por 204 anos, para marcar o início da primavera, um oficial municipal tem uma missão nobre: anotar num quadro na Prefeitura a ocasião do surgimento do primeiro botão a desabrochar na castanheira histórica.
O extenso banco na Promenade de la Treille |
Homenageando o papel vital que Genebra desempenhou no surgimento do calvinismo, a encosta sobre o qual a Promenade se debruça contém um mural, que pode ser acessado por dentro do parque. O Muro da Reforma (Mur de la Réformation), com 100 m de extensão, apresenta as estátuas com cinco metros de altura de quatro elementos-chave da Reforma Protestante na Suíça, entre os quais obviamente se inclui Calvino. De cada lado, três estátuas menores homenageiam outros nomes protestantes importantes na Europa da época, dos quais eu só conhecia alguns, como o inglês Oliver Cromwell e o holandês Guilherme I. No muro está gravado o lema em latim Post Tenebras, Lux ("Após a escuridão, a luz"), usado por Calvino e gravado em moedas e selos emitidos por Genebra.
Muro da Reforma no Parc des Bastions |
Estava pesquisando o material para este post quando fiquei chocado ao descobrir que somente 19 dias após minha estadia as estátuas sofreram a ação de vândalos, sendo alvejadas com tinta; se transformaram em estátuas multicoloridas. Caramba!
Para quem se interessa pelo tema, junto à Catedral está situado o Museu da Reforma, apresentando a história e aspectos do protestantismo ao longo dos últimos cinco séculos. O museu também está instalado num casarão de pedra histórico, erguido no século XVIII no terreno do antigo claustro da Catedral.
Calvino é o segundo da esquerda para a direita nas estátuas do Muro da Reforma. |
No próximo post, a somente dois quilômetros ao sul do centro de Genebra, um lugar com atmosfera bem diferente: Carouge.
⏩➤ Este é o décimo nono post da série sobre a Suíça. Para visualizar os demais, acesse A saborosa Suíça.
Postado por Marcelo Schor em 25.04.2021
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