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Glória, onde o Rio ainda lembra Paris

 

Outeiro da Gloria e Praça Luís de Camões


      A Glória é um bairro singular no Rio de Janeiro. Com pouco comércio, é uma região principalmente residencial. Mais antiga que os vizinhos Catete e Flamengo e colada ao centro da cidade, a Glória era uma região altamente valorizada há um século. De lá para cá a situação mudou e hoje é uma área um pouco esquecida. Várias de suas atrações são desconhecidas dos turistas visitantes no Rio, que muitas vezes a ignoram por completo, mas há verdadeiros tesouros arquitetônicos em cantos preservados das suas ruas e ladeiras. 

            Nosso percurso pela Glória se inicia por seu marco mais reconhecido, a igreja  situada no alto do outeiro que leva seu nome. Pela sua localização elevada, é visível à distância, em especial a partir da Baía de Guanabara. Inaugurada em 1730 em estilo barroco com pedras de granito na fachada, a igreja logo passou a ser a preferida entre os nobres imperiais. Foi lá que D. Pedro II e sua filha Princesa Isabel foram batizados. Não é portanto sem razão que o templo ostenta o título de Imperial Igreja de Nossa Senhora da Glória. Imperdíveis em seu interior são os painéis de azulejos espalhados pela nave e sacristia, criados no estilo típico português, com desenhos azuis em fundo branco.

Igreja do Outeiro da Glória

            Uma alternativa bem legal para se chegar com comodidade à Igreja da Glória é usar o plano inclinado que a une à Rua do Russel. Meio de transporte incomum no Rio, o funicular inaugurado em 1944 é gratuito e leva dois minutos para vencer o desnível em velocidade lenta. Caso esteja funcionando, uma boa ideia é subir pelo plano inclinado e depois da visita ir descendo pela ladeira. Pode-se aproveitar para conhecer as ruelas do morro em paralelepípedo ou pé de moleque,  estreitas e pitorescas. O charme e a tranquilidade da área já fizeram com que alguns hostels fossem abertos, especialmente na  Barão de Guaratiba, ladeira sem saída que se inicia na Rua do Catete. 

Rua Barão de Guaratiba no Morro da Glória


             Em frente ao outeiro, já ao nível do mar, fica outra propriedade eclesiástica que merece ser apreciada. Trata-se do Palácio São Joaquim no final da rua da Glória. Como ostenta a inscrição talhada sobre seu pórtico grego, o palácio episcopal foi inaugurado em 1912 para servir como residência do então cardeal arcebispo, função que readquiriu em anos recentes. Seu visitante mais ilustre foi o Papa Francisco, que orou do balcão para a multidão que o assistia durante a Jornada Mundial da Juventude em 2013. Quem passa pela calçada dificilmente nota os mosaicos no piso formados pelas pedras portuguesas, apresentando emblemas religiosos acompanhados de inscrições em latim. 

Palácio São Joaquim


        Na rua que faz esquina com o palácio. a Benjamin Constant, uma construção cuja frente lembra o Panteão de Paris chama a atenção dos transeuntes. Ainda mais se lerem uma das inscrições sobre a entrada, "Ordem e Progresso", o conhecido lema positivista da bandeira nacional. É o Templo da Humanidade, que abriu as portas em 1897 para abrigar a filosofia positivista, muito em voga na época. Aliás o templo está na rua certa, afinal Benjamin Constant foi um dos maiores entusiastas do positivismo. Na década passada o templo esteve fechado por muito tempo após o desabamento parcial do teto, mas foi restaurado recentemente.  

Templo da Humanidade

 

       E ainda perto do palácio fica outro símbolo do bairro, o Relógio da Glória. Obra de um relojoeiro alemão com material francês, o relógio de quatro faces serve de referência para a consulta da hora desde 1905, quando foi plantado no local com a murada que o acompanha. Junto ao relógio funciona nos domingos de manhã uma das feiras livres mais famosas do Rio, a Feira da Glória, onde de vez em quando rolam até rodas de samba e chorinho.  

Relógio da Glória 

          A Rua do Russel é o endereço mais nobre do bairro. É difícil imaginar que há 120 anos aqui ficava a praia, hoje distante centenas de metros, do outro lado do Parque do Flamengo. A praia também se chamava do Russel, mas afinal quem foi esse cara? João Russel era um descendente de ingleses que adquiriu a concessão para montar a primeira companhia de esgotos da capital do país, mas alguns anos depois por falta de recursos cedeu os direitos para empresários da Inglaterra, que finalmente fundaram a empresa City. Sua estação elevatória, a primeira das Américas, foi inaugurada em 1864 por D. Pedro II. A grande surpresa é que parte de suas instalações continua no mesmo lugar, com paredes de pedra aparente que formam a única construção existente no lado ímpar da rua do Russel (sempre a achei curiosa pela aparência superantiga e castigada das paredes da casa, mas jamais poderia supor sua importância histórica). Máquinas de tratamento de esgoto ainda se encontram lá, no sótão do prédio que agora sedia a Sociedade de Engenheiros e Arquitetos do estado.

As pedras na parede da primeira estação de tratamento de esgoto no continente


             Alguns prédios da rua chamam a atenção pelo apuro de suas fachadas. Nada sintetiza melhor o antigo glamour da área que o Hotel Glória, construído num local estratégico, exatamente na curva onde se situava a casa de João Russel. A semelhança com o Copacabana Palace não é coincidência, ambos foram projetados pelo mesmo arquiteto. Inaugurado um ano antes em 1922, o Hotel Glória foi um dos hotéis principais de alto luxo da cidade, sendo especialmente famoso pelos concorridos desfiles de fantasias que promovia no Carnaval. Após uma lenta decadência, foi fechado em 2008, tendo o prédio trocado de mãos algumas vezes desde então. Parece que desta vez sua remodelagem será bem sucedida, transformado num edifício de apartamentos de padrão alto. Será que o Glória celebrará seu centenário em grande estilo?

O imenso Hotel Glória e o extravagante Edifício Ipu, separados pela ladeira de acesso ao Outeiro da Glória. 


            E é precisamente bem na frente do Hotel Glória que a paisagem parece retroceder cem anos no tempo. A amurada em ferro e granito, os vários lampiões antigos e a dupla de estátuas que representam o comércio e a navegação datam de 1908, quando se comemorou o centenário da Abertura dos Portos às Nações Amigas, realizada por D. João VI ao chegar no Brasil. 

Estátua com o caduceu de Hermes simbolizando o comércio e lampiões de época na frente do Hotel Glória


A outra estátua, representativa da indústria, também fronteira ao Hotel Glória


                Outras edificações com fachadas chamativas também fazem a fama da Rua do Russel. Uma delas é o Edifício Ipu, vizinho ao Hotel Glória, que de determinado ângulo nos faz lembrar uma popa de navio devido ao formato estreito e abaulado. Numa espécie de premonição do que aconteceria com o Glória, este prédio de apartamentos construído em 1935 no estilo art-déco já foi também um hotel. Outro exemplo marcante na mesma rua é o Edifício Lage, erguido em 1925 com uma fachada de inspiração italiana. Um dos mais belos e precursores prédios da Zona Sul carioca, ele tem a originalidade da fachada trabalhada realçada pela alternância entre andares das sacadas gradeadas. Só para se ter uma ideia, seu proprietário original e morador Henrique Lage era o mesmo dono da mansão do atual Parque Lage, no bairro do Jardim Botânico. Industrial famoso, seu nome batiza diversos empreendimentos país afora, incluindo uma refinaria da Petrobras em São José dos Campos. 

Edifício Lage


             Tanto o Ipu quanto o Lage fazem frente à deserta (até demais) e bonita Praça Luís de Camões. Seria de se esperar alguma homenagem ao poeta português, mas em mais uma das esquisitices cariocas os retratados em estátuas são outros vultos, de nacionalidades e épocas distintas.  A primeira ocupa uma posição mais central - a estátua de 13 m de altura em granito mostra a cena clássica do padroeiro da cidade, São Sebastião, atingido pelas flechas disparadas a mando do imperador romano Diocleciano. Curiosamente a estátua está posicionada nas cercanias do lugar onde o fundador do Rio, Estácio de Sá, recebeu dos índios tamoios a flechada que acabaria lhe tirando a vida justamente num dia de São Sebastião, 20 de janeiro de 1567. Aliás, a estátua de São Sebastião foi esculpida em 1965 para comemorar o quarto centenário da cidade. 

A estátua de São Sebastião. O prédio à direita sediou por muitas décadas a Rádio Globo. 

              O outro é o Memorial Getúlio Vargas, sobre o presidente morto em 1954 no Palácio do Catete, a um quilômetro de distância. A parte visível do memorial inaugurado em 2004 é composta por duas peças, um enorme busto de Getúlio sobre mármore e uma grande escultura branca moderna em mau estado, que na minha opinião não combina em nada com a área de arquitetura tradicional onde está plantada. O que poucos sabem é que no subsolo do memorial está escondido um ótimo museu gratuito em estrutura circular, que conta com fotos históricas e recursos multimídia para apresentar aspectos da vida do ex-presidente e das épocas em que governou o país. O museu, que possui sala de cinema e auditório, se encontra fechado devido à pandemia.

Busto de Vargas na Praça Luís de Camões. Ao fundo, parte da escultura em estilo moderno.

          Como a Glória é pródiga em esculturas de personalidades históricas, na praça vizinha encontramos mais uma, erigida em 1900 para comemorar outro quarto centenário, o do Descobrimento do Brasil. Popularmente conhecida como "a estátua do Pedro Álvares Cabral", ela o apresenta junto ao escrivão Pero Vaz de Caminha e ao frei Henrique de Coimbra. O monumento foi projetado de uma forma intrigante para valorizar o descobridor do Brasil, já colocado em posição mais alta: ao se vislumbrar Cabral pela frente, seus outros dois colegas de navegação simplesmente somem de vista, ocultos por sua figura, sua capa e a bandeira hasteada.   

Monumento do Descobrimento pelo lado de Pedro Álvares Cabral...


... e pelo de Pero Vaz de Caminha: coadjuvante que desaparece de cena em prol do protagonista Cabral.


            Chegamos então à praça considerada uma das mais bonitas do Rio, a Praça Paris. Inspirada nos jardins franceses, a área verde longa e fotogênica conta também com diversas esculturas, onde se destacam dois felinos em mármore de Carrara postados em cada extremidade do lago central. O formato oval do seu caminho de terra já permitiu que na década de 1930, poucos anos após sua inauguração, a praça se convertesse em circuito de corrida de automobilismo por anos seguidos. Quem diria...

Praça Paris


          Há muito tempo sem pisar na Praça Paris, levei um baita susto ao retornar agora para fotografá-la, pois uma das suas características mais marcantes se foi. Os ficus que cercam o lago esculpidos em forma ornamental cônica (técnica de jardinagem chamada topiaria) tinham sido totalmente podados, ficando quase desgalhados e completamente desfolhados. Parece que houve desleixo na manutenção das árvores e a solução foi radical, recomeçando-se do zero para que os ficus possam recuperar a elegância original. A operação certamente provocou reclamações entre os frequentadores, pois no portão de entrada da praça estava afixado um cartaz afirmando que devido ao mês em que foi realizada, a poda não afetou a reprodução dos pássaros que costumam fazer ninhos por ali. 

Uma garça real sobre um peixe ornamental na Praça Paris, em meio aos ficus podados.


            Nas primeiras décadas do século XX o Rio de Janeiro era apelidado de "Paris Tropical". Agora vejamos: hotel renomado com fachada clássica, ruas com adornos centenários, um funicular em plano inclinado levando a uma igreja, um templo semelhante ao Panteão e principalmente uma praça em estilo francês chamada Paris. Existe algum bairro carioca que melhor evoque este clima saudoso de belle-époque parisiense que a Glória?



Postado por  Marcelo Schor  em 15.08.2021 

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