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Botafogo, entre o Corcovado e a Baía de Guanabara

 

A enseada, praia e bairro de Botafogo aos pés do Corcovado

 
      Um dos maiores e mais dinâmicos bairros da Zona Sul do Rio, Botafogo apresenta várias facetas. Além de bairro residencial, é polo gastronômico e de serviços na cidade, abrigando inúmeras escolas, consultórios, clínicas e shoppings. No território que se expande a partir da Enseada de Botafogo, seu cartão postal mais reconhecido, ruas quase sempre engarrafadas fazem esquina com vilas de casario antigo tranquilas e preservadas, num contraste típico.
Enseada de Botafogo com a alta Torre Rio Sul ao fundo, tradicional shopping de Botafogo


           De onde surgiu o nome Botafogo? As primeiras menções à região remontam aos primórdios da cidade. O fundador Estácio de Sá tinha entregado as terras ao amigo Francisco Velho. Em 1567, dois anos depois, em meio ao conflito entre portugueses e franceses, Velho acabou raptado pelos índios tamoios aliados dos franceses, sendo finalmente libertado na batalha épica que passou à posteridade devido à flechada que levou Estácio de Sá à morte. A enseada que banha a área, ainda sem nome (aparentemente os tamoios não tinham uma denominação específica), passou a ser chamada de Enseada de Francisco Velho. Em 1590 Velho, já velho, vendeu a área para João Botafogo. Não era seu sobrenome real, mas se você pensou que o sujeito tinha tendências incendiárias, errou. Este era o apelido pelo qual em Portugal eram conhecidos os arcabuzeiros, fabricantes ou  especialistas no manejo do arcabuz, uma arma de fogo então muito comum.  Botafogo passou a designar não só a enseada mas todo o futuro bairro. 

           Cem anos depois a região ainda pertencia a um só dono, o controverso Padre Clemente de Mattos. De família influente, após ser expulso do seminário em Lisboa por se envolver com mulheres o religioso reiniciou os estudos e foi galgando cargos eclesiásticos. Chegou aos  postos elevados de vigário geral e tesoureiro-mor enquanto enriquecia, comprando as terras botafoguenses. Nada humilde, deu o nome São Clemente ao caminho (hoje rua) que passava por sua fazenda, além de eternizar o nome da mãe, Dona Marta, no morro ao lado. 
Igreja do Colégio Santo Inácio, um dos principais estabelecimentos de ensino da cidade na Rua São Clemente, com o Corcovado ao fundo. 


            No século XIX as chácaras do tempo de colônia já tinham dado lugar a casarões pertencentes a nobres abastados, incluindo barões do café. As mansões dividiam espaço na região com moradas bem mais humildes - o conhecido romance O Cortiço, escrito por Aluísio Azevedo em 1890, provavelmente se desenrolava num imóvel da Rua Assunção. Com o passar das décadas, a maioria destes casarões  amplos foi abaixo, especialmente na Praia de Botafogo, onde foram geralmente substituídos por edifícios altos, feios e sem atrativo nenhum, acompanhando a poluição crescente das águas da praia. Porém  alguns casarões teimam em resistir ao tempo para deleite de nossos olhos, transformados em colégios, centros culturais ou até incorporados como sede de condomínios residenciais. 
Pavilhão Santa Clarice, clínica médica na Rua Assunção no século XIX, hoje parte de condomínio residencial


              A rua que se chama Praia de Botafogo pode causar espanto por estar a muitos metros da praia, separadas por jardins e pistas de automóveis, mas até 1906 as águas da baía realmente a alcançavam. Além de apreciar as estátuas espalhadas pelos jardins, vale a pena nos determos em algumas de suas construções. 
Estátua "Crepúsculo" nos jardins da Praia de Botafogo, esculpida em 1906

 
           A magnífica Basílica da Imaculada Conceição já chama a atenção de quem aprecia a vista a partir da trilha da orla, como na foto de abertura do post. A igreja foi erigida junto ao colégio homônimo, criado anteriormente para o ensino de meninas por decisão de D. Pedro II. Com a fachada em estilo neogótico repleta de detalhes salientes e a inconfundível torre pontiaguda, foi inaugurada em 1892 após seis anos de construção. No interior do templo se sobressaem colunas coríntias de mármore rosa que sustentam o teto abobadado. 
Basílica da Imaculada Conceição


           O que poucos sabem é que a basílica está ligada à história da estátua mais famosa do país. Foi ao apreciar a vista do Corcovado a partir das janelas da igreja que o Padre Pierre-Marie Boss imaginou um monumento religioso em seu topo, visível de muitos pontos da cidade. O padre chegou a registrar sua ideia em poema no prefácio de livro de 1903, 28 anos antes da inauguração do Cristo Redentor. No poema ele chamou o Corcovado de "pedestal único no mundo". Visionário, tinha toda a razão. 
Interior da basílica, com colunas de mármore rosa e 32 vitrais


           Se a construção mais antiga da praia impressiona pela sua beleza e elegância, a mais nova também não decepciona. A apenas duas quadras da basílica, o Centro Cultural da Fundação Getúlio Vargas apresenta em suas curvas suaves o estilo inconfundível de Oscar Niemeyer. O mais famoso arquiteto brasileiro faleceu pouco meses antes da inauguração ocorrida em 2013, e por isso a torre da FGV ao lado, construída ao mesmo tempo, leva seu nome. O centro cultural engloba auditório, área de exposições e uma biblioteca nomeada em honra do ex-ministro (e vice-presidente da FGV) Mário Henrique Simonsen, com acervo acumulado nas décadas de atuação da fundação.  

⇨ Até o dia 29 de abril a paisagem abaixo estará bem diferente. Na esplanada diante do Centro Cultural foi montada uma tenda enorme com a exposição "Voo para o Futuro" da FAB, onde a atração é uma réplica do novo caça de última geração F-39 Gripen. Os visitantes podem inclusive entrar na cabine da aeronave. O ingresso é gratuito e a visita deve ser agendada previamente através do site   https://evento.fgv.br/gripenfab.

Centro Cultural da FGV, entre as duas torres onde se situa a sede da fundação. 

Réplica do caça  F-39 em exposição na FGV

           Descendo a Praia de Botafogo chegamos no número 400 ao Botafogo Praia Shopping. O shopping ocupa há 23 anos o prédio original onde se estabeleceu a primeira grande loja de departamentos no Rio, a Sears, que ofereceu na época um conforto inédito aos compradores: a primeira escada  rolante da cidade. A praça de alimentação no último andar do shopping é um ponto excelente para obter uma vista privilegiada e gratuita da enseada e do Pão de Açúcar. Anteriormente tínhamos acesso à varanda aberta, mas agora temos que nos contentar em apreciar a paisagem por detrás do vidro das janelas.  

Vista clássica da Enseada de Botafogo e do Pão de Açúcar desde o último andar do shopping


          Se os casarões desapareceram da orla, alguns sobrevivem na antes aristocrática Rua São Clemente. Um  ótimo exemplo é o Palacete Guinle, construído no início do século passado pela família Guinle na esquina da Rua Guilhermina Guinle. Sede da Casa Firjan, a mansão agora tem função nobre: é  posto de vacinação anticovid.  

         O terço final da rua São Clemente apresenta em sequência vários palacetes espaçosos rodeados por jardins, que nos tempos em que o Rio era a capital federal abrigavam embaixadas importantes: a de Portugal ainda hospeda seu consulado; a residência do embaixador norte-americano foi transformada em escola bilíngue; e à do Reino Unido, uma mansão imponente em arquitetura georgiana, coube sediar o Palácio da Cidade, gabinete de trabalho do prefeito do Rio desde a criação do cargo quando o Estado da Guanabara foi extinto. Pitoresco é o nome do rio que corta estas propriedades, hoje subterrâneo - Banana Podre. 

Casa Firjan


           Destaque maior nesta rua é a Casa de Ruy Barbosa no número 134, onde  o eminente jurista baiano viveu por 28 anos. Bem antiga, a casa foi construída em 1850 em terreno oriundo da fazenda do Padre Clemente. Em estilo neoclássico, foi passada ao governo com a morte de Ruy em 1923, sendo transformada em museu em 1930. Vale a pena conferir seu acervo e sua decoração, mas não se deve deixar de apreciar os vistosos jardins nos fundos da casa. Uma das atrações é o pau-brasil plantado pelo então Presidente Washington Luís quando o museu foi inaugurado. 

Casa de Ruy Barbosa


          Imperdível junto aos jardins é a antiga cocheira, depois transformada em garagem. Lá estão em exposição quatro veículos usados por Ruy ao longo das décadas. Três movidos por tração animal foram confeccionados ainda no século XIX - um cupê, um vitória e um landau; já o mais novo é um automóvel Benz fabricado na Alemanha em 1913, que tinha força de 55 cavalos a vapor e alcançava 80 km/h, o que devia ser um assombro para a época. Com alguns acessórios luxuosos, o carro apresenta volante ainda no lado direito. Nos fundos dos jardins se encontra um prédio que sedia a Fundação Casa de Rui Barbosa.

Pau-brasil nos jardins da Casa de Ruy Barbosa. A estrutura do parreiral já era mencionada  no século XIX. 


          Pelo que me lembro, visitei o lugar quando ainda era criança, e apesar de hoje morar a alguns quarteirões de distância, nunca mais tinha voltado. Fiquei espantado com a extensão dos jardins, frequentado por famílias num bairro com poucas praças. A garagem foi uma grata surpresa, e a visão do Benz me evocou a visita que fiz ao Museu da Mercedes em Stuttgart há quatro anos, uma dos exposições mais interessantes que já tive a oportunidade de conhecer. 

           A Casa de Ruy Barbosa está aberta com entrada franca de terça a sexta das 10 às 18h e nos fins de semana entre 14 e 16h. Os jardins têm horário mais amplo de abertura nos sábados e domingos.

O automóvel Benz de Ruy Barbosa


            Dois museus adicionais em Botafogo  também ocupam casarões centenários tombados, de fundos um para o outro. São o Museu do Índio na Rua das Palmeiras e o Museu Villa-Lobos na Rua Sorocaba, ambos no momento fechados devido à pandemia. Este último organiza a cada mês de novembro o Festival Villa-Lobos com programação diversificada, sempre incluindo obras do grande maestro e compositor. Suas duas últimas edições foram on-line.

Museu Villa-Lobos


           Tal qual o Flamengo, bairro vizinho, Botafogo também tem alta tradição futebolística. Na realidade eram dois clubes distintos com mesmo nome, o Botafogo de futebol e o de regatas, que só se unificaram em 1942, quase quatro décadas após a fundação do primeiro, devido a uma tragédia num terceiro esporte. Durante uma partida de basquete (!!) entre os dois clubes, um atleta do primeiro Botafogo, também participante da seleção brasileira, chegou atrasado e entrou direto na partida. Poucos minutos depois teve mal súbito na própria quadra e faleceu no vestiário. Os dirigentes ficaram tão comovidos que fundiram os clubes em homenagem ao jogador, criando assim o Botafogo de Futebol e Regatas. Trajetória inversa à do Fluminense, que começou único e depois se dividiu, dando origem ao Iate Clube na divisa entre Botafogo e Urca.

               A sede do Botafogo na Rua General Severiano, inaugurada em 1928 com um concorrido baile de gala, ainda está de pé. Já estive em festas de casamento nos salões do palacete de estilo eclético. No entanto o  estádio adjacente que tornou a rua conhecida em todo o país foi demolido para a construção de um shopping. No largo em frente ao palacete encontramos a estátua do Manequinho, inspirada na célebre Maneken-Pis de Bruxelas. A estátua, que originalmente se situava em outro lugar, se transformou em mascote do clube quando algum torcedor teve a inspiração de vestir o menino nu com a camisa alvinegra. 

              Uma curiosidade sobre o clube  é que desde 1996 seu hino ficou desatualizado no conhecido verso "campeão desde 1910". Por decisão da federação estadual de futebol o Botafogo foi então declarado cocampeão do Campeonato Carioca  de 1907 junto com o Fluminense, passando a ser este seu primeiro título conquistado. 

Estátua do Manequinho diante da sede do clube Botafogo 


          Botafogo é capaz de surpreender  com cenários fora do comum. Um exemplo é a Praça Marinha do Brasil. Todo dezembro, final de primavera no Rio, doze belas árvores frondosas em fila  se enchem de amarelo por poucos dias, antes de as folhas caírem formando um tapete no chão de terra. Neste ano o fenômeno ocorreu em pleno janeiro, fazendo com que o quarteirão ladeado por edifícios em estilo art-déco adquirisse ares de capital europeia outonal em meio a um calor de quase 40 °C. Coisas do Rio...

Praça Marinha do Brasil na Praia de Botafogo

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 Postado por  Marcelo Schor  em 02.03.2022  

4 comentários:

  1. Eii Marcelo, você tem instagram para acompanhar suas viagens ?

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    1. Olá. Por enquanto as viagens não estão registradas no Instagram.

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  2. Botafogo também merecia um post sobre suas atrações gastronômicas e etílicas ;)

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    1. É verdade, Aline. Ruas como a Visconde de Caravelas e a Álvaro Ramos possuem vários bons restaurantes.

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